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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 3x10 - Cidadão de Bem

Conto de Hernany Tafuri
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Sinopse: No Brasil contemporâneo, o cidadão comum, revoltado pela ineficiência do Estado em lhe garantir direitos básicos como segurança, resolve fazer justiça com as próprias mãos. Quais as consequências para seus atos? Enquanto um policial corrupto mata em nome de suas alianças, o cidadão de bem torna-se um vigilante que cruza seu caminho de maneira definitiva.



3x10 - Cidadão de Bem
de Hernany Tafuri


I Castro 

            CASA-MADEIRA-DADO-3572; Positivo?

            Cabo Casto, mais pelo curioso desbotamento no “R” que compunha sua identificação [CASTRO] que por traços de sua personalidade, passava informações pelo rádio: Não se pode afirmar se havia mais de uma pessoa no veículo; Positivo? O motorista evadiu-se do local logo após a colisão; Positivo? Quando a viatura chegou, a vítima já estava morta; Positivo? Essa merda de máscara incomoda pra cacete, Fonseca! Só quem presenciou o acidente foi um morador de rua; Positivo? Ele apresenta claros sinais de embriaguez; Positivo? Vou logo dizendo que não é confiável; Positivo?

            Ah, doutor! Tava deitado ali no meu canto, só ouvi uns pneus cantando alto e o carro passou voando, fez a curva até de banda, assim. Aqui é muito perigoso, quase toda noite tem briga, gente morre adoidado! Essa moçada nova fica tudo com a cabeça feita; a defunta mesmo tava perdida ali, doutor, na esquina, fazendo vida. Esse carro aí mesmo, oh!, passou devagarzinho na primeira vez, os playboys desceram, tudo figurão da alta sociedade, neguinho cheio da grana, filhinho de papai mesmo, falaram com ela; pelo visto pensaram que era mulher; ela deve ter mostrado o pau pra eles, porque levantou o vestido assim, sabe; aí, doutor, o bicho começou a pegar, ela não gostou e saiu comendo os caras no pescoção, deu bolsada a zóio neles! Vai ver por isso que deram a volta no quarteirão, doutor, e vieram tinindo assim pra cima dos córneos dela! Amassaram ela todinha, coitada, nem sentiu! Fumo nada não, doutor; bebi hoje não! 

II Cidadão de bem 

            Por que o senhor levou a arma do crime pra sua casa?

            Queria descartá-la enrolada na folha do jornal em que se publicasse a notícia.

            Por quê?

            Como vocês chegaram até mim?

            Imagens da câmera de segurança daquela igreja na esquina.

            Ah!

            Por que o matou?

            Ele tentara roubar minha esposa algumas semanas antes, na saída do trabalho.

            E vocês não avisaram à polícia?

            Ela estava grávida de três meses. Gravidez complicada, primeiro filho. O susto a fez abortar.

            E o senhor resolveu fazer justiça com as próprias mãos?

            Eu o esperei por noites seguidas! Caminhava pela região, fazendo o trajeto que ela fizera, no mesmo horário, para encontrar o sujeito que assassinou nosso filho.

            Pra se vingar?

            Ele me disse as palavras que dissera a ela: o celular ou a vida! Era o que dominava meus pensamentos há tempos! Eu me virei lentamente, olhei-o bem nos olhos e respondi: a vida! E cravei-lhe a faca na barriga!

            Esta faca?

            Sim! Ele urrou de dor e susto e desespero. Sangue de um vermelho quente e viscoso escorria-lhe pelas pernas, por minha mão. Eu apenas olhava firme em seus olhos enquanto a faca entrava e saía de seu ventre.

            Quantas facadas o senhor desferiu na vítima?

            Vítima? Quando ele por fim caiu, e eu já não precisava segurá-lo por não temer sua reação, seu caco de garrafa afiado já não me assustava, ele tentou fechar os olhos. Ouça bem, doutor: fechar os olhos enquanto eu o encarava? Não! Ele tinha que saber! Então eu disse: continue me olhando, seu filho da puta! A última coisa que você terá de ver na vida são meus olhos!

            O que lhe valeu sua vingança?

            Então ele tentou me dizer alguma coisa, porém, cortei-lhe a garganta primeiro! A vida, seu filho da puta! Seu corpo estremeceu como se um súbito vento esfriasse a noite. Sentia-me vivo, forte, ali ajoelhado naquela sarjeta. Seus olhos perderam o brilho. A vida, seu filho da puta!

            E o que o senhor ganhou com isso? Deixasse a polícia cuidar da situação!

            Doutor, o senhor sabia que o número de furtos, roubos e casos de violência diminuiu a quase zero naquela área depois que o filho da puta morreu?

            Não! Não dá pra me atentar a dados tão específicos com tantos casos pra resolver.

            Então valeu ter tirado aquele filho da puta de circulação. Não precisa me agradecer!

            O senhor já será liberado. Algo mais a acrescentar ao seu depoimento?

            Vou tomar um banho, beijar minha esposa. Converse com meu advogado; ele apresentará a tese de legítima defesa. Até nunca mais!

 

III Auto de resistência 

            Ai, doutor, o senhor está me sufocando!

            Fica quieto, porra! Cadê sua arma?

            Tenho não, só estava passando. Vi o cara caído e vim ajudar.

            Ajudar o caralho, você veio roubá-lo!

            O senhor vai atirar em mim só porque sou preto?

            Não é motivo suficiente?

            E o playboy aí, vai escapar ileso?

            Conheço a família dele: pai senador, tio deputado, irmão mais velho vereador.

            Mas subiu o morro pra buscar cocaína, fumar maconha e descer doidão!

            E você vendeu, vagabundo!

            Vendi nada não, senhor; sou trabalhador.

            Trabalha com que, moleque do cacete? Traficando, roubando, hein?

            Sou jovem aprendiz num estúdio de música.

            E tá fazendo o que na rua?

            Voltando da escola. Meu sonho é ser rapper.

            Aí, Fonseca, o maluco quer mexer com rap!

            Tremendo mané! Vai cantar pra São Pedro daqui a pouco, xará!

            Para, por favor, o senhor está me sufocando!

            Cala a boca, porra!

            Eu não fiz nada!

            E esse monte de flagrante espalhado aí no chão?

            É tudo do branquinho.

            Fonseca, você acredita nesse Zé Ninguém ou no filho do senador?

            Sobrinho do deputado né?!

            Irmão mais novo do vereador!

            Não consigo respirar, por favor.

            Tá ouvindo alguma coisa, Fonseca?

            Porra nenhuma!

            Por favor, me solta!

            Coloca o rapaz na viatura enquanto termino aqui. Depois a gente leva ele pra casa. Vamos ganhar uns pontinhos com a família, sacou, Fonseca?!

            É pra já, chefia!

            Eu não consigo...

            [Tiros] 

            A noite tá boa hoje, não acha?

            Vai ficar melhor, Fonseca!

            Pois é! Resgatamos o irmão mais novo do vereador!

            Sobrinho do deputado!

            Filho do... porra, o filho da puta vomitou no banco de trás!

            Foda-se, Fonseca! Amanhã o recruta limpa. Se prepara pra contar a grana!

 

IV Consequência 

            [No carro, saindo da delegacia] 

            “Deixe sua mensagem após o sinal”:

            Querida, estou a caminho; livre! O depoimento durou um pouco mais que imaginávamos, mas agora é com o advogado.           

            Atende o telefone!           

            “Deixe sua mensagem após o sinal”:

            Querida, quando você puder, me liga. Amo você!           

            Atende! Atende! 

            “Deixe sua mensagem após o sinal”:

            Querida, estou a dois quarteirões de casa, quer que eu leve aquele docinho que você tanto gosta? Amo você!           

            Atende!           

            [Entrando em casa]           

            Cheguei, meu amor; cadê você?

            Querida?

            Querida!

            No chão, inerte, sua esposa; cinto enrolado no pescoço; olhos perdidos.

            Espanto! Pranto sincero; bilhete nas mãos:

 

Não pude suportar perder nosso filho daquela maneira. A expectativa de ficar sem você também, meu amor, me consumiu por inteiro. Sua atitude não foi a correta, tanto que discutimos. Você não tinha o direito de tirar a vida daquele ladrão! Este mundo não me serve; viver é muito perigoso, lembra-se, meu grande amor? Você sempre será o meu anjo!

 

            O anjo recolhe suas asas sob turvas vestes. Letras confusas lancinam seus olhos feito sóis no papel. O silêncio do quarto traspassa a fragilidade de seu corpo, o faz suar como homem comum, desidratando-o de toda razão. Perene, o tempo o abate; castiga-o, humano; arranca-lhe lágrimas feito criança.

            O anjo persiste em ocultar suas asas enquanto socorristas removem o que lhe restara de sua amada. O vento espalha o perfume de penas ao passo que policiais e delegado lhe ofertam seus pêsames.

            O anjo oculta sua dor mais profunda: o cidadão roubou seu bem mais precioso. Vida se vai vazia de tudo! Nem vírus, nem máscara, nem mesmo sua vingança.

            O anjo percebe a cagada que fez!

            Suas asas, pensa o anjo, de que servirão? Serão como o mundo que findou sua amada?

            Quem é você? Perguntam a ele.

            Sou a consciência pesada, aquele que tudo perdeu!

 

V Em domicílio 

            Cabo Castro, o que o traz aqui a essa hora?

            Senador, não queríamos incomodar o senhor, mas seu filho aprontou mais uma.

            O que esse puto fez agora, cabo?

            Estava caído numa viela no morro. Doidão de tudo. Nós o achamos e o trouxemos pra cá.

            Puta que o pariu! Mês passado você já o livrou daquele acidente de carro. Ele e os amigos foram pra zona e confundiram um traveco com mulher. Deviam estar embriagados.

            Então foi seu filho que esmagou a Britney?

            Fica quieto, Fonseca! Deixa que eu falo, porra! Segura firme o rapaz!

            Tá!

            Desculpe-nos pelo constrangimento, senador!

            Relaxa, Castro! Esse moleque já não me surpreende faz tempo! Pode deitá-lo no chão aí mesmo, soldado.

            O que posso fazer por vocês, cabo? Ou diria: Sargento?!

            Sério que o senhor pode interferir na promoção?

            Claro! Somos todos colegas de longa data. Conheço muito bem como funcionam as coisas, meu caro!

            Muitíssimo obrigado, senador!

            E por você, o que posso fazer? Fonseca, não é?

            Sim senhor, senador! Soldado Fonseca a seu dispor!

            Fale logo que eu quero conversar com esse bostinha aí!

            Minha parte pode ser em dinheiro mesmo!

            Tá. Um minuto. Aqui!

            Caralho!

            Achou pouco, rapaz!

            Não senhor! Nunca vi tanta grana assim!

            Aí, Castro, esse menino ainda tem muito o que aprender!

            [Risos]

            Deixa comigo, senador! Daqui a pouco ele estará um veneno!

            Tendo você como mentor, não acontecerá nada diferente disso!

            Aprendi com os melhores!

            Não tenho dúvidas!

            [Gargalhadas/apertos de mão/fim]

 

VI Torto 

            Sou um anjo; sua ressaca.

            Vai tomar no cu!

            Vim pra fazer você sofrer.

            Porra nenhuma!

            Você bebe, espanca sua mulher, tira da boca dos filhos pra torrar em cachaça.

            Me deixa quieto, porra! Senão você vai entrar na porrada!

            Assediar a própria filha foi a gota. Apronte-se para pagar.

            Mas que merda é essa?

            Vou espancá-lo. Com sorte, seu corpo será identificado com alguma facilidade.

            Vai tomar n...

            [Ais/ossos sendo partidos/respiração ofegante]

            Sou seu anjo; a consciência que lhe faltava. Vai ser gauche na puta que o pariu!

            [Cuspe/passos/fim]

 

VII Habeas corpus 

            Olha aí!

            Suzaninha, quanto tempo?

            Cabo Castro, princeso da minha vida!

            Cabo o cacete, agora sou sargento!

            E não trocou a identificação desbotada?

            Deixa essa porra pra lá, gostosa! Dá um beijinho no papai, dá?

            Sai dessa, sargento! Boca de puta é gaveta de piroca!

            Cala a boca, Fonseca! Vai ver o defunto, porra!

            Homem pardo, sem carteira, sem identidade. Pronto!

            E morreu de que, Fonseca? Não aguentou esse avião e enfartou? Trabalha direito, porra!

            Perdão, sargento!

            E você Suzaninha, dá pra ir ali no cantinho com o pai, chupar como só você sabe? Já tô engatilhado!

            Corte profundo no pescoço. Parece feito com lâmina afiada.

            Tá sabendo de alguma coisa, meu tesão?

            Fui eu que matei o filho da puta!

            Você, Suzaninha? O cara não quis pagar?

            Pagou e adiantado, Cacá!

            Então ele te bateu, meu neném?

            Nada, isso era um merda!

            Não fode minha paciência, Suzaninha! O que ouve nessa porra?

            O cara peidou bem na hora H!

            O quê?

            Peidou, Castro, tá surdo!

            E daí?

            E daí é o cacete! Só porque sou puta tenho que aguentar falta de educação?

            Você beija na boca, chupa o pau dos caras, dá o cu e bebe leitinho, e o camarada não pode peidar? Puta que os bunda!

            Falta de educação não dá, cacete! Já falei! Vai peidar com a mulher dele!

            Mãos para trás! Você está presa por homicí...

            Presa o caralho, Fonseca! Foi legítima defesa!

            Mas sargento, ela confessou!

            Senta aí, Fonseca! Vê se aprende alguma coisa! Se quiser, pode tocar uma punhetinha!

            Sargento?

            Vem cá, Suzaninha, tira essa máscara; vem que seu habeas corpus foi concedido! 

 

VIII Anjo 

            [“Tevê ligada; alto volume”]     [Sozinho, Anjo comenta as informações] 

            “Corpo encontrado em região descampada ainda não foi identificado.” 

            Acho que exagerei dessa vez!           

            “A polícia acredita que possa ser do homem desaparecido há uma semana.”           

            Quem mandou tentar comer a própria filha?           

            “Doutor, me ajuda a encontrar meu marido, ele é trabalhador.”           

            Vivia enfurnado no botequim.           

            “Nossos meninos estão passando dificuldades sem o pai.”           

            O puto bebia com o Bolsa Família dos moleques, porra!           

            “Sargento Castro, o senhor tem alguma evidência que confirme que o corpo encontrado é mesmo do marido dessa senhora?”

            “Pergunte ao soldado Fonseca; ele quem sabe dos detalhes.”

            “Múltiplas lacerações, fraturas e contusões pelo corpo. Quem fez isso tinha muita raiva do sujeito.”           

            Acho que exagerei dessa vez!

 

IX Desonra e demérito 

            Manédson cantava rap, jogava bola com os amigos, ajudava a mãe trabalhando num estúdio musical, estudava à noite, sonhava ter profissão. Seu avô, que assumira a responsabilidade de criá-lo após seu genro abandonar a esposa grávida e sumir no mundo – homens cometem essa forma cruel de aborto –, escolhera seu nome em homenagem a seus dois grandes ídolos: Garrincha e Pelé.

            Manédson era jovem preto pobre: marginal padrão, réu de estimação de uma sociedade hipocritamente racista, estruturalmente viciada: foi morto a tiros quando voltava pra casa. Seu único delito: ser jovem, preto e pobre. Caiu sobre o caderno roto que carregava; sangue misturado a poesias e fórmula de Bhaskara. Jornais sobre seu corpo preto, velas perto a iluminar sua solidão torpe. Por não solicitarem seus documentos, seu boletim escolar, tiveram de preencher boletim de ocorrência: auto de resistência, justificativa protocolar que não deveria colar.

            Na Câmara, sargento Castro, soldado Fonseca, recebem medalha de Honra. Salvaram o irmão mais novo do vereador, sobrinho do deputado, filho do senador. A tevê transmite em link ao vivo, apresentador que berra bandido bom é bandido morto! Omite preto e pobre porque não tem coragem de assumir seu racismo – preto pobre bom é preto pobre morto, isso já basta pra ser sinônimo de bandido. Audiências aplaudem, de casa, in loco. Castro, recentemente subido de patente por influência do resgate do rapaz branco rico no morro, inicia seu discurso de agradecimento: meus bons homens, senhoras.

            Sr Zizinho e dona Mariéllen Brasileiros da Silva choram sua perda sem poder colocar pedra sobre tanto pesar.

 

X Muito cinto 

            Suzaninha?

            Da parte de quem?

            Consegui seu número num anúncio de jornal.

            Ah! Estou disponível agora.

            Seu local é discreto mesmo?

            Mais que a batcaverna!

            Você topa um lance mais sadomasô?

            Faço de tudo, seu sacana, se a grana for boa!

            Dinheiro não é problema! Reserva a tarde toda pra mim. Qual o endereço? Já estou indo!

            Delícia!

            [...]

            Nossa! Com sua aparência você pode comer a mulher que quiser.

            Obrigado!

            Quer tirar a roupa, gostoso? Posso começar chupando você? Dizem que pago um boquete inesquecível!

            Trouxe umas coisinhas que gostaria de usar primeiro.

            Ah, aliança! Sua esposa não te deixa brincar, não é, seu sacaninha!

            Deixa minha esposa fora disso, porra!

            Calma, amorzinho! Calma! Só estou comentando. Vou querer a grana adiantada!

            Desculpe-me! Quanto?

            O que você tem aí nessa bolsa?

            Quanto?

            Quinhentos. Mas só faço com camisinha. Se seu pau for muito grande e me machucar, se me marcar de alguma maneira, se quiser beijar na boca, cobro mais duzentos. Caso você tenha um cintaralho e queira que eu te foda, fica de brinde!

            Cinta o quê?

            Bobinho! Eu amarro na minha cintura um vibrador bem grande e soco tudo no seu cu!

            Toma logo mil; vou querer de tudo como você disse que faz!

            Delícia! Podemos combinar uma palavra-chave caso a coisa passe dos limites? É do jogo, você deve saber.

            Claro!

            Poderia ser vermelho?

            Tinha outra em mente.

            Qual?

            Anjo!

            Delícia! Quer começar dominando?

            Essa é a ideia!

            Vamos tirar o sobretudo? Tô louca pra ver o seu pau!

            Quero te amarrar primeiro.

            Delícia!

            Deita na cama, por favor.

            Por favor? Você é o mestre, você manda!

            Pra cama, agora!

            Ai, tesão!

            Bunda e buceta pra cima!

            Ui!

            Vou algemar seus pés a seus braços!

            Como assim?

            Já!

            Tesão!

            Vou te vendar.

            Tô toda molhahhhdahhh!

            Amarrar a corrente das algemas aos pés da cama.

            AH! MMM!

            Prepare-se para um prazer inesquecível!

            Vem, meu amor, acaba comigo! Vem!

            A ideia é essa!

            [Velas penetrando a vagina e o ânus de Suzaninha; acesas; pingando]

            Ah! Hum! Delícia! Tesão!

            A melhor parte vem agora: um cinto no seu pescoço!

            Mandar ver!

            Ah! Hum! Ai! Uhn! Hã! Coff coff coff! Oss! Uss! Er... Ahn.. Ahn.. Ahnjo! Ahnahnahnahnjo!

            Eu sou um anjo, sua purificação.

            Coff coff coff! Oss! Uss! Ahnahnahnahnjo! Ahnahnjo! Ahnjo! Ahn.. Ah... A...

            Sou seu anjo, a consciência que lhe faltava. Vai chupar o pau do Castro na puta que pariu!

            [Pena entre os seios nus/passos/fim]

 

XI Má notícia 

            Fala, Fonseca! Tá a fim de um café? Um ovo colorido? Polícia aqui não paga!

            Valeu, Castro! Deixa pra próxima!

            Que vozinha de merda é essa? Aconteceu alguma coisa com alguém que me importe?

            Foi!

            Desembucha logo, porra!

            Aquela piranha que você comeu: mataram ela!

            Brinca com isso não, Fonseca!

            Quem me dera!

            Mataram a Suzaninha! Como?

            Sufocaram ela com um cinto de couro. Enfiaram velas nela; troço bizarro!

            Puta que pariu! Te juro, Fonseca: quando eu pegar o sacana que fez isso com ela... porra, meu irmão... o cara vai pedir pra morrer rapidinho!

            Tá chorando, sargento?

            Tô de luto, porra! Perdi o melhor boquete da minha vida!

 

XII Don't stand-up 

            E aí, cuzão? Não ouviu que não vai rolar tirar foto hoje?

            Sou um anjo; sua lombra.

            Tá louco, mano?

            Louco está você, maconheiro.

            Ih, rapaz! Você me conhece de onde, doidão?

            Você apela em suas apresentações, incutindo a vontade de experimentar drogas nas mentes dos jovens.

            Incutindo? Que porra é essa, mano?

            Prepare-se para pagar!

            Pagar o que, viado?

            Vou fazer você sofrer.

            Vai me dar uma camisa do Vas...

            [Ais/ossos sendo quebrados/respiração ofegante]

            Sou seu anjo; a consciência que lhe faltava. Vai virar adubo pra suas plantinhas na puta que o pariu!

            [Cuspe/passos/fim]

 

XIII Pena 

            Atenção: ninguém precisa se machucar hoje! É só dizer o que eu quero saber! Ó, vai rolar um garrafão de pitu e um pacote de cigarros!

            Tá bonzinho, sargento! A morte da puta mexeu com você mesmo, hein!

            Ahahahahaha!

            Pow! Paft! Pow! Paft!

            Ai, porra!

            Respeitem minha autoridade! Você é o cacete! É senhor! E puta é tua mãe!

            Calma, sargento!

            Calma é o caralho, Fonseca! Não dá pra dar mole pra estes merdas! Vamos recomeçar: quem souber de alguma coisa sobre a Suzaninha, minha Suzaninha, vai ganhar uma cachacinha da boa e vai pitar tranquilo. Quem não souber, não enche a porra do meu saco, caralho! Tá bom assim?

            Senhor, é da branca ou da amarela?

            Como assim, Tião?

            A cachaça, é branca ou amarela?

            Sei lá, porra! Que diferença faz?

            É que a amarela me arde os peito!

            Puta que os pariu! Pow! Paft! Pow! Paft!

            Calma, sargento!

            Calma teu cu, Fonseca! O desgraçado quer escolher a porra da cor da pinga! Meus bons homens, senhoras; pela última vez, com calma: alguém viu, ouviu, sonhou, seja lá a caceta que for, alguma coisa sobre o filho da puta que arregaçou com ela? Ou alguém fala, ou vai rodar todo mundo, porra!

            Senhor sargento Castro, por obséquio.

            Fala, Poeta! Se for merda você vai se foder legal!

            Ai de mim! Guardei isto, talvez ajude a solucionar a contenda que lhe causa espécie.

            Que porra é essa?

            Acho que é uma pena, sargento!

            Tu é gênio, Fonseca! Tu é gênio! Onde você acho isso, Poeta?

            Nos aposentos da senhorita Suzana, senhor.

            E você estava lá por quê?

           Apreciava aquela garota muito além de sua aparência; lembrava-me minha filha. Há três noites, saiu esbaforido de lá um sujeito alto cujo rosto não divisei; chamaram-me a atenção seus trajes inadequados para essa época do ano.

            E?

            Ele usava um sobretudo preto que o cobria por completo, tinha o desenho de enormes asas brancas às costas, por suposto. Por isso quis conferir como ela estava, se precisava de algo. Ao avistá-la naquela situação, um profundo pesar abateu-se sobre meu ser. Chegando mais próximo, encontrei essa pena entre seus seios. Cobri-a e informei a polícia pelo telefone público da esquina.

            E você guardou a pena para?

            Preservei-a para o senhor! Presumi que viesse investigar. Admiro o apreço que nutre, nutria,  pela senhorita.

            Cuida bem da pena aí, Fonseca! Toma aqui, Poeta, você mereceu!

            Obrigado, senhor! Vou dividi-los com meus irmãos de infortúnio!

            Falou!

            Há possibilidades de eu ser arrolado?

            Ihihihi! Sai pra lá, Poeta! Meu negócio é mulher, porra! Bora lá, Fonseca!

            [...]

            Aí, sargento: não é perigoso o Poeta encher o rabo de cachaça e fumar ao mesmo tempo?             Foda-se! Tomara que se exploda; cara chato pra cacete!

 

XIV Frágil enigma 

            O Anjo lê as capas dos jornais em sua solidão forçada: nada lhe interessa! Pandemia que avança, devasta; praias lotadas; presidente, bravatas; jovens negros abusados pela polícia. Por um instante, a vida parece-lhe num normal opressivamente inalterado. Porém, uma notícia destaca-se rompendo-lhe a melancolia dos solitários: “Herói: Sargento Castro recebe Medalha de Honra por salvar filho de senador em favela”. Algo deve ser feito; não há como esperar! Corrupção e bandidagem em seu mais alto grau de hipocrisia! Suor lhe cobre a face. Esses crápulas levaram minha mulher, nosso filho!, pensa. Não podem vencer sempre!, planeja. Sobretudo, faca, pistola, raiva, asas. Lê e relê a matéria: o rapaz estava em região de tráfico de drogas; branco, teve o direito de voltar pra casa. Salvo pelos policiais sob a morte de um menor negro: bandido de estimação de uma sociedade que nada lhe oferta, ceifa-lhe a vida. BAN(D)IDO! Decidido: esta noite o caos será a solução.

            O Anjo contempla a foto da esposa: perdão é a palavra que mais falou de uns tempos pra cá. Recortes de jornal cobrem sua cama: Ladrão é morto em tentativa de assalto no centro da cidade; Tragédia! Professora é encontrada morta em sua residência; Corpo desovado em matagal seria de agressor registrado; Humorista morto era conhecido por apologia ao uso de maconha; Prostituta morta de maneira bizarra era suspeita de assassinato; Irmão de vereador é resgatado em favela por policiais heróis.

 

            Imaginei que o encontraria aqui.

            Sai pra lá, coroa! Meu negócio é mulher.

            Vim pra consertar as coisas, recolocar o mundo nos eixos.

            Que papo é esse, cara?

            Cadê seus amiguinhos?

            Aqueles covardes estão com medinho de voltar aqui.

            Por conta da travesti que vocês mataram.

            Pode crer!

            Vamos andando.

            Calma aí, seu lixo! Você sabe com quem está falando?

            Filho de senador, sobrinho de deputado, irmão de vereador.

            Pode crer!

            Foda-se! Agora você é meu!

 

            O Anjo, acordado o resto da noite, enfim aumenta o som da televisão: corpo de jovem em lixeira nos fundos de boate. Nenhum pertence foi levado. Sua cabeça não foi encontrada.

 

            [Aos empurrões]

            Posso pagar o quanto você quiser!

            Seu pai pode. Você não passa de um inconsequente; acha que pode fazer o que bem entender que nunca haverá consequências.

            Sou rico, porra!

            [Soco na cara]

            Caralho!

            E isso lhe dá o direito de assassinar outro ser humano a sangue-frio sabe-se lá por quê?

            Ela era viado!

            E isso lá é motivo?

            [Soco na cara/queda/Arma apontada pra cabeça]

            Socorro! Socorro!

            Ninguém vai ouvir seus gritos assim como o rapaz negro também não foi ouvido.

            Quem?

            Aquele que morreu para que você estivesse aqui.

            [Tentativa de se levantar/chute no estômago/falta de ar]

            Ai! Puta que o pariu! Quem, porra? Quem?

            Aquele que valeu uma medalha a um policial corrupto, certamente ligado à sua família.

            Foda-se, o Castro! Foda-se o preto! Quem deu falta dele?

            [Tentativa de se levantar/chute no peito]

            Quem é você, filho da puta? Meu pai, quando souber, vai acabar com sua raça!

            Sou um anjo; sua cura.

            [Tiros]

 

            O Anjo recorta a notícia que lhe interessa: Cabeça encontrada na porta da casa de policial condecorado é mesmo do filho do senador. Pena encontrada em sua boca é de ave ainda não identificada.

 

XV Anjo Castro 

            Eu sou um anjo; seu flagrante.

            Saca só, Fonseca: o maluco acha que é um anjo!     





Conto escrito por
Hernany Tafuri

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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