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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 3x01 - As Razões de um Assassino (Season Premiere)

Conto de Marcelo Cruz
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Sinopse: Após assumir as investigações sobre um brutal homicídio, a policial civil Alice precisará superar sua inexperiência para desvendar o caso. Enquanto isso, seus valores e sua visão de mundo passam a ser questionados diante de uma investigação mais profunda: quais foram as razões do assassino?


3x01 - As Razões de um Assassino (Season Premiere)
de Marcelo Cruz

Prólogo

Durante uma madrugada fria, na cidade de São Paulo, José Faustino chegou a casa bêbado e espancou a esposa, pois acreditava que outro homem havia estado ali. No meio da discussão, Pedro, o jovem filho do casal, acordou e presenciou a briga.

José não gostou disso. Seu juízo ébrio entendia como equivocada a ideia de uma criança vivenciar aquele acontecimento, então, quando o filho começou a chorar e se recusou a voltar à cama, ele também o agrediu.

No dia seguinte, Rita Faustino, a mãe de Pedro, o vestiu com um casaco antes de mandá-lo para a escola, como forma de ocultar os hematomas em seus braços. Mais tarde, ela recebeu uma ligação informando que Pedro havia batido em um colega durante o recreio.

No caminho até o colégio, Rita presenciou dois policiais militares abordarem um jovem sentado no meio-fio. O olhar ameaçador dos policiais fez com que ela apertasse o passo e não olhasse para trás ao ouvir o som característico de um tapa atingindo um rosto.

Na escola, Rita foi alvo de xingamentos por parte da mãe da criança em que seu filho batera. Ela saiu de lá o mais rápido possível, arrastando Pedro pelos cabelos e castigando-o com unhadas e beliscões.

No caminho de volta, mãe e filho presenciaram uma briga de trânsito em que dois motoristas trocaram ameaças e palavrões. Em seguida, cruzaram com o jovem que fora abordado pela polícia e que, agora, segurava um saco de gelo sobre o olho roxo.

Durante a tarde Rita lavou a louça do almoço e José assistia a um programa de televisão que entretia a audiência entrevistando familiares de vítimas de assassinatos.

Ao pôr-do-sol, José vestiu sua camisa do Corinthians e avisou que iria ver o jogo no bar. Era dia de final do campeonato e o boteco estava cheio quando José chegou. Ele ignorou as provocações de torcedores palmeirenses e se sentou junto ao balcão, pedindo a primeira dose de cachaça. Seu time havia vencido a primeira partida do confronto decisivo e José nutria esperanças de que aquela noite terminaria em muita comemoração, o que não podia imaginar é que seria a noite de sua morte.


Capítulo 1

Sangue: foi a primeira coisa que chamou a atenção de Alice ao entrar no beco pela manhã. Pegadas ensanguentadas sobre o concreto do solo, respingos avermelhados sobre as paredes altas e uma poça de sangue espalhada sob o cadáver da vítima.

Alice atravessou o cordão de isolamento e mostrou o distintivo da Polícia Civil ao policial militar que guardava a cena do crime. Em seguida, ela se aproximou cautelosamente do morto, tentando não atrapalhar os peritos que fotografavam o local.

Por detrás dos óculos escuros, seus olhos passearam cuidadosamente pela cena, sem deixar passar nenhum detalhe. As pegadas que se distanciavam do cadáver eram de um sapato de tamanho 40, ou 41. Não adiantava segui-las, pois morriam poucos metros depois de chegarem à calçada.

A vítima era um homem cuja quantidade de rugas sobre a pele negra e de fios grisalhos em meio aos cabelos escuros denunciavam uma idade de aproximadamente 40 anos. Os tênis surrados, a bermuda manchada e a camisa de futebol falsificada sugeriam a baixa renda, que se reforçava pela característica periférica da região.

Ele havia caído de costas sobre um amontoado de sacos de lixo, cujo cheiro acre se misturava a um fedor de álcool e urina que empesteava o local. O sangue que secara sobre o rosto e escorrera até o chão vinha de diversos ferimentos na testa, causados por pancadas do pedregulho caído ao lado. Os hematomas se concentravam do lado direito da cabeça, o que indicava um agressor canhoto.

Em suas poucas semanas como investigadora criminal, Alice já havia visto mais cenas de homicídio do que podia se lembrar, mas ainda não havia se habituado. Como poderia? Algum ser humano era capaz de se acostumar a tanta violência e brutalidade? Talvez alguém selvagem, como o desgraçado que ceifara a vida daquele homem em um beco escuro, mas não as pessoas normais.

De qualquer forma, seu profissionalismo precisava superar qualquer reação adversa. Cabia a ela identificar o significado por trás de cada detalhe e encarar o terror como trabalho.

            -Estava na calçada – uma voz masculina desviou sua atenção. Era um homem de meia idade, pele branca, cabelos e barba acinzentados, o distintivo da Polícia Civil sobre a camisa pendia de uma corrente em seu pescoço. Ele bebia café em um copo plástico e mirava a cena com olhos desinteressados e cheios de olheiras. Alice lembrava de seu rosto no banco de dados da polícia, havia procurado por seu nome quando soube que ele seria seu novo parceiro.

            -Você é o investigador Diego? – ela quis confirmar.

            -Prazer, Alice – respondeu ele, com um aceno da cabeça. A voz emanava um misto de tédio e cansaço.

            -O que estava na calçada? – indagou ela.

            -Aquela pedra, a arma do crime – ele explicou. – É um pedaço do meio-fio, a calçada aqui em frente está quebrada.

            -Então o assassino não estava preparado para o crime, pegou a primeira coisa que viu pela frente – ela supôs.

            -Provavelmente. Crime passional, briga de torcida, algo assim.

            -Testemunhas?

            -Um morador de rua. Ele estava na praça ali em frente e viu a vítima entrar no beco, depois viu outro homem o seguir. Esse homem saiu, mas a vítima não.

            -Ele soube dizer as características do suspeito?

            -Nada esclarecedor, devia estar bêbado. Disse apenas que o homem também usava uma camisa de futebol, mas nem se lembrava da cor.

            -Foi ele quem achou o corpo?

            -Não, foi um funcionário deste galpão – Diego apontou para a parede do lado direito do beco. – Ele foi colocar o lixo pela manhã e se deparou com isso. Eles têm uma câmera na calçada, mas as imagens são codificadas. Estamos tentando contatar o dono.

            -Ótimo – disse Alice. – E o que mais temos na região?

            -Alguns bares. Provavelmente a vítima via a final do campeonato em um deles, quis evitar a fila do banheiro ou algo do tipo e veio mijar no beco. Se desentendeu com outro torcedor e aí deu nisso.

            -Pode ter sido um roubo, ou uma execução a mando de alguma facção – especulou ela.

            -Eu duvido muito. A vítima não tinha envolvimento com nenhuma organização, os únicos antecedentes eram de brigas domésticas, eu já pesquisei. Ele se chamava José Faustino, os documentos ficaram no bolso, dentro da carteira, o que também descarta a hipótese do roubo.

            -Uma morte brutal como essa deve ter algum motivo relevante – ponderou Alice.

            -Você se surpreenderia se soubesse as razões pelas quais eu já vi uma pessoa matar outra – comentou Diego.

            Alice pretendia saber mais a respeito daquilo, mas foi interrompida por um policial militar, que se aproximou apressado da dupla de investigadores.

            -Acabaram de irradiar uma denúncia anônima – comentou o homem. – Já temos o nome e o endereço do assassino.

            Alice sorriu empolgada e se virou para Diego:

-Parece que já vamos descobrir o motivo.


 

Capítulo 2

-Túlio Salamanca, 37 anos – Alice lia para Diego, no computador de bordo da viatura, enquanto a dupla se aproximava do endereço do suspeito. – Faz tempo que não apronta nada, mas os antecedentes... Uma condenação por homicídio tentado em 2010, mas adivinha só o contexto: briga de torcida. Parece que temos o nosso homem.

-Achei que eles eram presumidos inocentes até que se provasse o contrário – brincou Diego, com um sorriso discreto.

-Alguns são menos inocentes que outros – respondeu Alice. – É aquela casa ali.

Diego estacionou em frente ao imóvel e a viatura da Polícia Militar que os acompanhava parou do outro lado da rua. O lugar era um sobrado de dois andares, com paredes envelhecidas que há muito não viam uma demão de tinta. Na janela do segundo andar, uma bandeira do Palmeiras pendia do parapeito.

-Alice: um. Presunção de inocência: zero – comentou a investigadora, apontando para a bandeira.

-Tem alguma coisa contra os palmeirenses? – questionou Diego, desembarcando da viatura.

-Só contra os que são assassinos – respondeu Alice, acompanhando o parceiro até o portão da residência e tocando a campainha.

Em poucos minutos, o suspeito apareceu. A pele morena estava mais envelhecida do que na foto que Alice vira na viatura e os olhos de desleixo ostentavam um aspecto mais calmo e experiente. Ele mancou até o portão de entrada e fez uma expressão assustada ao observar os distintivos mostrados pelos investigadores e a dupla de PM’s na calçada oposta.

Alice estufou o peito e pousou as mãos na cintura, destacando o revólver sob a camisa.

-Temos algumas perguntas a fazer – ela foi direto ao ponto. – Onde o senhor estava ontem à noite, entre as dez horas e a uma da manhã?

-Fui ver o jogo em um bar aqui perto. Depois voltei para casa – ele respondeu. – Por quê?

-Estava usando esta roupa? – indagou Diego, apontando para a regata e a bermuda do suspeito.

-Não, camisa de futebol – ele explicou, com a voz trêmula. – Está no varal.

-Lavou bem rápido – comentou Alice, atenta às reações nervosas do homem. – Por acaso se sujou?

-Não, só suei muito na comemoração – ele respondeu, franzindo o cenho.

-E os calçados? Também lavou? – Diego quis saber.

-Passei uma água, estavam melados, cerveja, urina, essas coisas – explicou Túlio, com uma voz cada vez mais baixa. – Aconteceu alguma coisa?

-Um homicídio – respondeu Alice. – Um torcedor rival do seu time foi morto e uma denúncia aponta você como culpado.

-Não, não, não – falou Tulio, empalidecendo e mancando para longe do portão. – Eu só fui ver o jogo, não matei ninguém.

-E por que a denúncia então? – indagou Alice.

-Eu não sei de nada sobre isso – ele falou.

-Não sabe né? O lugar do crime tem câmeras de segurança, será que quando tivermos as imagens você vai se lembrar de algo que não está nos contando?

-Eu não sei de nada – ele repetiu.

-Então deixa eu ver seus documentos – Alice mandou.

Túlio encarou a investigadora por alguns segundos. Ela viu gotas de suor escorrerem por sua testa e um visível temor dominá-lo. Sem nada dizer, ele entrou na casa e voltou minutos depois, apresentando o RG.

Diego mandou que ele aguardasse ali e acompanhou Alice até a viatura.

-Continua convicta? – ele indagou, enquanto ela conferia os dados do documento no computador de bordo. – Com esse problema na perna, não seria fácil matar alguém.

-Uma vítima bêbada, pega de surpresa em um beco escuro? Até uma criança conseguiria – respondeu Alice. – Convenhamos, olhe para o histórico dele, para a denúncia anônima, essa história de lavar as roupas, sem falar do nervosismo. Ele tem cara de culpado, jeito de culpado, cheira a culpado, o que acha que ele é?

Diego suspirou e olhou na direção do suspeito, com um semblante pensativo. Até que finalmente respondeu:

-Está decidido então.

***

Alice fechou os olhos e deixou a água do chuveiro escorrer pelo corpo. Com um suspiro relaxante, ela agradeceu pelo fim de mais um dia produtivo.

Naquele momento, Túlio Salamanca estava detido na delegacia, aproveitando seus últimos minutos longe de uma cela. Após ser conduzido para um interrogatório, ele disse nada saber sobre o crime, mas as dúvidas se esgotaram quando os investigadores trouxeram o morador de rua que havia testemunhado a fuga do assassino. O homem estava sóbrio o suficiente para reconhecer Túlio como sendo a pessoa que deixara o beco na noite anterior. Agora, bastava esperar a vinda das imagens de segurança para que o delegado fizesse a requisição da prisão preventiva.

Com Túlio preso, um criminoso a menos vagava pelas ruas da cidade, o que significava uma chance a menos de que alguém acabasse morto em um beco sujo e escuro. Essa era uma reflexão que Alice fazia questão de reafirmar para si mesma, era o que a motivava a dar tudo de si em seu trabalho.

Ela gostava de pensar a sociedade como três grupos de pessoas: o primeiro era composto pelos cidadãos íntegros, que, independentemente de sua história de vida e de pequenos desvios morais, se mantinham dentro das fronteiras da lei. O segundo era formado pelos delinquentes, que possuíam certa propensão natural a resolver seus problemas através da violência. Por fim, havia os agentes da lei, pessoas que formavam o muro que protegia os bons cidadãos dos maus.

Alice era uma dessas pessoas e começava a ter certeza de que possuía talento para o ofício. Em pouco menos de um mês na Polícia Civil, ela já havia solucionado mais de uma dezena de casos. Talvez ainda lhe faltasse certa dose de experiência, mas até mesmo Diego, um investigador que já ocupava o cargo há dez anos, havia apoiado suas decisões naquele dia, o que ela considerava ser um forte indicativo de sua competência.

Com a autoestima devidamente afagada, Alice desligou o chuveiro, secou o corpo e se enrolou na toalha, caminhando até a sala e cozinha conjugadas do pequeno apartamento.

Uma noite nublada e silenciosa dominava os céus e ela decidiu romper o silêncio com uma playlist de rock. Enquanto os primeiros acordes de Homem Primata, dos Titãs, preenchiam o apartamento, ela ligou a televisão no noticiário da noite e começou a preparar um chá.

A dança leve e distraída da policial, enquanto buscava pelos utensílios nos armários da cozinha, cessou diante das imagens de uma reportagem. Ela abaixou o volume da música e se ateve à foto de José Faustino na televisão. Em seguida, um repórter começou a explicar os detalhes do caso, revelando o horário e local do crime, a suspeita de briga de torcida e a detenção de Túlio Salamanca.

O que ela não esperava é que, a seguir, o apresentador do jornal anunciaria ter recebido imagens das câmeras de segurança do local.

Assim que as filmagens foram exibidas, o queixo de Alice caiu, junto com a xícara de chá. O homem que saía do beco vestia a camisa branca do Corinthians, tinha o rosto coberto por um boné e, sobretudo, andava sem mancar.


 

Capítulo 3

            Sentada em sua mesa, Alice sequer percebeu o nascer do Sol e as trocas de turno na delegacia. Pela milésima vez, ela apertou o play da gravação, ouvindo atentamente cada palavra da denúncia anônima que apontava Túlio Salamanca como autor do crime. Ela já havia memorizado todas as frases do solicitante, bem como seu tom de voz nervoso e os sibilos causados pela língua presa.

            Em seguida, ela assistiu novamente às filmagens de segurança do local, tentando vencer as sombras da imagem para identificar alguma característica do assassino, mas, assim como nas dezenas de tentativas anteriores, não teve êxito.

-Parece que alguém além de mim anda tendo insônia – comentou uma voz conhecida à porta da sala. Alice mal deu ouvidos a Diego e apenas reagiu à sua aproximação quando ele pousou uma caneca de café sobre sua mesa.

            -Estava na cara que aquele morador de rua não tinha certeza no reconhecimento – ela comentou. – Sem falar do desgraçado do dono do galpão, que entregou as imagens para a imprensa antes de nos mostrar.

-Vai se acostumando, alguns repórteres fazem um trabalho investigativo melhor do que policiais. – comentou Diego. – Me disseram que você está aqui desde a madrugada. Melhor descansar um pouco.

-Como sabemos que alguém tentou incriminar o Túlio Salamanca, pensei em várias hipóteses sobre o motivo do crime – explicou ela, ignorando a recomendação. – Pode ser que algum inimigo do Túlio quisesse prejudicá-lo, mas qualquer pessoa que procurar por brigas de torcida na internet vai encontrar o nome dele, então pode ter sido outra hipótese. Pensei em uma vingança da esposa da vítima, afinal ela apanhava do marido. Depois do assassinato ela pode ter pedido a um amigo para fazer a denúncia e...

-Alice – interrompeu Diego. – Isso são só especulações.

-Eu só estou tentando achar uma explicação racional – disse ela, esfregando os olhos e se recostando na cadeira.

-A violência quase nunca é racional – respondeu Diego. – Poupe os seus esforços por enquanto, vai ser mais produtivo se fizermos um pouco mais de trabalho de campo.

-O que você tem em mente?

-Conversei com a esposa da vítima pelo telefone, parece que ele saiu de casa para assistir ao jogo em um boteco, mas ela não soube dizer em qual. Quem sabe o dono de algum bar possa nos ajudar.

***

-Décimo da lista, e nada de novo – falou Alice, com um suspiro frustrado, assim que a dupla saiu de mais um dos diversos bares que pretendiam visitar.

-Talvez tenhamos mais sorte no próximo – disse Diego, bocejando.

-Ele pode ter mentido para a esposa, pode ter ido visitar uma amante – sugeriu Alice.

-Não existe um perfil para pessoas criminosas, mas existe para os bêbados – respondeu Diego. – A autópsia revelou uma grande quantidade de álcool no sangue, não sei de onde a vítima veio ou para onde ela iria depois, mas que passou por algum desses bares, isso eu tenho certeza.

-Só falta aquele ali, mas continua fechado – disse Alice, apontando para um estabelecimento na esquina do quarteirão onde ocorrera o crime, cujas portas de enrolar estavam fechadas. – Vamos ter que espera.

-Por que não comemos alguma coisa enquanto isto? – indagou Diego, com um novo bocejo. – Estou morrendo de fome e preciso de um café.

Alice deu de ombros e acompanhou o parceiro até uma padaria, na esquina oposta. Eles escolheram uma mesa junto à janela e fizeram os pedidos para a garçonete. Enquanto aguardavam, Alice abriu as notas do celular e começou a digitar.

-Acabei de cogitar uma nova hipótese para o crime, já pensou que... – ela parou ao levantar os olhos e se deparar com o parceiro dormindo. Julgando-o com o olhar, ela voltou à digitação e apenas parou quando a garçonete trouxe o café que Diego insistira em tomar antes da refeição.

Diego fungou e mirou o café com os olhos semicerrados, então bocejou e bebeu o copo em uma só golada.

-Tenho sono durante o dia e insônia durante a noite, vai entender – ele comentou, apoiando o queixo nas mãos, em uma pose entediada.

-Como consegue dormir com a adrenalina do trabalho? – ela perguntou.

-Adrenalina? É só mais um caso como outro qualquer.

-Nossas reputações podem estar em jogo aqui, não se esqueça que prendemos um inocente.

- O homem só ficou preso por algumas horas – respondeu Diego, desinteressado. – Se soubesse quantas vezes isso costuma acontecer...

Alice cogitou argumentar que era impensável cometer novamente um erro daqueles, mas desistiu.

-De qualquer forma, temos um assassino à solta e outras pessoas podem estar em perigo se ele não for preso – ela comentou e se surpreendeu quando Diego reagiu com um sorriso.

-Você está vendo muitos filmes – disse ele. – A pessoa que estamos procurando não é diferente de mim ou de você, todos somos capazes de cometer uma atrocidade como aquela, basta um lampejo. Faz parte da nossa natureza.

-Fale por você – desta vez, elaprecisou discordar. – Somos policiais, não podemos nos dar ao luxo de ter estes “lampejos”.

-Se você soubesse as coisas que eu já vi outros policiais fazerem, ficaria enojada – comentou Diego, fixando os olhos cansados nos de Alice. – E não estou falando de “policiais problema”, estou falando dos bons, dos competentes, dos mais companheiros. Todos somos capazes de coisas assim.

Alice permaneceu em silêncio por um instante, sem conseguir formular uma resposta adequada. Para seu alívio, um barulho metálico indicou a abertura do bar, na esquina oposta.

-Pode comer sem pressa, eu cuido disso – disse ela, se levantando. Diego deu de ombros e não fez questão de acompanhá-la.

Alice deixou a padaria, moldou o rosto com falsa simpatia e se aproximou do homem que começava a distribuir mesas de plástico pelo estabelecimento. Era um senhor baixinho, gorducho e que ostentava um farto bigode.

-Posso usar o banheiro? – questionou Alice. Ela gostava de sentir a personalidade das pessoas antes de se anunciar como policial.

-Está quebrado, desculpe – respondeu o homem, sem sequer olhar em sua direção. – Eu preciso consertar, já faz uns dias.

-Onde seus clientes estão indo ao banheiro?

-Na rua, eles costumam usar um beco aqui perto.

-O beco onde José Faustino foi assassinado?

Diante daquela pergunta, o homem finalmente fitou Alice, sem esconder sua desconfiança, que apenas desapareceu quando ela mostrou o distintivo.

-Ele estava aqui naquela noite – o homem informou, prontamente. – Era meu cliente. Um pouco problemático, daquelas pessoas que ficam chatas quando bebem e ele bebia bem.

-Sabe quem pode ter cometido o crime? – indagou Alice.

-O Zé discutiu com um rapaz – ele explicou. – Mas ele sempre discutia com alguém.

-Conhece esse rapaz? – perguntou ela, os olhos brilhando de esperança.

-Nunca tinha visto por aqui, mas naquela noite tinha todo tipo de gente, era final de campeonato – respondeu ele. – Talvez, se eu reencontrasse o sujeito, poderia reconhecê-lo, mas se me pedir pra descrever a cara dele, eu não saberia. Desculpe.

-Mais alguma coisa que possa me ajudar? – ela quis saber.

-Bom, pouco antes do Zé ir embora, o tal sujeito pediu uma dose de cachaça e acendeu um cigarro enquanto eu servia – explicou o homem, caminhando até o balcão. – Ele saiu apressado, mas deixou isto para trás.

O homem entregou a Alice um isqueiro, em cuja superfície havia o logotipo promocional de uma empresa.

-Ajuda em alguma coisa? – ele questionou.

-É o que vamos descobrir.


 

Capítulo 4

-Quantos suspeitos você marcou na lista? – indagou Diego, parando a viatura junto à cancela do estacionamento da fábrica.

-Quatro funcionários com antecedentes criminais, sete que moram na região do crime e dois membros de torcida organizada – respondeu Alice, baixando o vidro do veículo para se anunciar ao segurança na portaria.

Quando a cancela abriu e eles puderam avançar, Alice sentiu a ansiedade crescer. No dia anterior, ela ligara à empresa cujo logotipo estava no isqueiro do assassino. Era uma grande fábrica localizada naquela zona da cidade e um de seus diretores informou a Alice que o isqueiro havia sido um brinde entregue aos funcionários na última festa de fim de ano.

Ela explicou sobre as investigações e o diretor a autorizou a comparecer ali no dia seguinte para fazer alguns interrogatórios. Não era possível ter certeza de que o assassino trabalhava ali, mas os instintos de Alice lhe indicavam isso e, desta vez, ela esperava não estar errada.

            Os policiais desembarcaram e foram conduzidos por um funcionário pelo pátio de estacionamento, até a entrada do prédio mais próximo. O sol forte da manhã refletia nas janelas do imóvel de dois andares e um odor de borracha queimada tomava o ar.

            -Este é o prédio da administração, a fábrica fica do outro lado – explicou o funcionário, quando eles adentraram uma sala de recepção, preenchida por poltronas, mesas de centro e um balcão, junto ao qual se sentava um jovem recepcionista. – O diretor pediu que eu reservasse aquela sala para vocês – continuou o homem, conduzindo os detetives até uma porta ao lado do balcão, que dava acesso a um amplo aposento, no centro do qual se destacava uma mesa de reuniões.

            -Estes são os funcionários que eu gostaria de ver – avisou Alice, entregando um papel ao homem, que correu os olhos pelos nomes e disse que iria chamá-los imediatamente.

            Minutos depois, os suspeitos já aguardavam do lado de fora e, um a um, foram chamados ao interrogatório. Alice buscava utilizar todas as técnicas que conhecia para extrair o máximo de informações dos suspeitos: tentava explorar suas contradições, indagava-os sobre informações que eles provavelmente não sabiam que ela possuía, mostrava-lhes a foto da vítima e observava atentamente suas reações. Ainda assim, as esperanças da policial foram despencando, à medida que cada novo interrogado parecia ainda menos culpado que o anterior.

            O último interrogatório infrutífero se encerrou ao meio-dia e, assim que os policiais ficaram sozinhos na sala, Alice cobriu o rosto com as mãos e deixou escapar um suspiro frustrado.

            -De volta à estaca zero – comentou Diego, esfregando os olhos sonolentos. – Eu vou pedir um café e depois podemos almoçar, o que acha?

            Ela não respondeu, permaneceu encarando o nada, enquanto o parceiro deixou a sala. Já era o terceiro dia de trabalho dedicado ao mesmo caso e a resposta parecia cada vez mais distante. Talvez Alice não tivesse o talento que julgava ter, ou talvez o caso fosse complexo demais para ser solucionado. De qualquer forma, seria preciso se acostumar com a ideia de conviver com seu primeiro fracasso.

            Naquele momento, porém, um som dispersou todos os seus pensamentos. Era uma voz. Uma voz próxima e estranhamente conhecida.

            Ela se aproximou da porta, onde encontrou Diego conversando com o recepcionista, enquanto o rapaz enchia uma xícara com café. O recepcionista não falava muito, mas em suas poucas palavras, Alice reparou na língua presa e no tom familiar.

            Ela observou o jovem entregar a xícara de café para Diego, utilizando a mão esquerda. Em seguida, o rapaz se ateve à sua presença, mas rapidamente desviou o olhar e voltou a se sentar.

            -Como se chama? – Alice perguntou, se aproximando do balcão.

            -Flávio – respondeu o rapaz, sorrindo para ela.

            -Qual o número do seu sapato, Flávio?

            Diego engasgou com o café e o rapaz mirou Alice com estranhamento.

            -Quarenta – ele respondeu, mantendo o sorriso.

            Alice sorriu de volta e se debruçou sobre o balcão, se atendo aos ítens sobre a mesa do rapaz, dentre os quais um chaveiro lhe chamou a atenção, um chaveiro com o brasão do Corinthians.

            -Corintiano, então? – ela indagou. – Assistiu à final em algum bar?

            -Não – o sorriso do rapaz murchou. – Vi em casa.

Diego agora parecia mais atento do que surpreso.

            -Jura? – perguntou Alice. – Então, se eu trouxer o dono de um certo bar até aqui e pedir para que ele me diga se você é o assassino de José Faustino, não teremos nenhum problema, não é?

            Um silêncio desconfortável pairou no ar. Alice fitava Flávio com um olhar triunfante e Diego levava a mão até a cintura em busca da pistola, porém, antes que qualquer um dos dois agisse, o rapaz disparou em direção à porta.

            Os policiais gritaram em protesto e deram início à perseguição. Flávio cruzou o pátio de estacionamento, correndo em direção a um dos carros. A despeito dos pedidos de “pega ladrão”, os demais funcionários não passavam de espectadores atônitos.

            Flávio entrou rapidamente no carro e, enquanto dava a partida, Diego se aproximou do vidro do motorista, com a pistola em punhos, ao passo que Alice se posicionou na frente do carro, também apontando a arma.

            -Perdeu! Parado! – gritou ela.

            O olhar de Flávio se cruzou com o da investigadora, um olhar de pânico, como o de um animal acuado. Naquele instante, ela sabia o que ele estava prestes a fazer, conseguia projetar o que seria necessário para impedi-lo, bastava puxar o gatilho... “Não”, uma voz falou na consciência de Alice e a fez vacilar. Foi o tempo suficiente para o carro acelerar e atingi-la.

Ela rolou sobre o capô e se atirou para a lateral do veículo, caindo no chão. Deitada, ela ouviu Diego disparar e escutou um pneu se romper. Se erguendo com dificuldade, ela viu Flávio perder a direção na primeira curva do estacionamento e chocar o carro contra um poste de luz.

            Diego correu até o acidente e Flávio desembarcou, cambaleante e com as mãos para cima. Era a imagem de sua derrota.

***

            Enquanto Diego explicava ao diretor da fábrica sobre o que acontecera, Alice e Flávio se sentavam lado a lado em um banco, ele algemado e com uma costela quebrada, ela com a pistola em mãos e sentindo uma dor intensa no tornozelo.

            Alice sentia um misto de emoções, o medo de que Flávio repentinamente se tornasse agressivo, a raiva por ter sido atropelada e, sobretudo, a curiosidade que a acompanhara nos últimos dias.

Ela estava prestes a fazer uma pergunta, quando as lágrimas do rapaz romperam o silêncio.

            -Minha mãe vai me matar – ele choramingou.

            A frase pareceu estranha aos ouvidos de Alice, como se não pudesse ter saído da boca de quem a dissera. Na verdade, tudo em Flávio parecia inadequado às suas expectativas. Como poderia ser aquele o homem que cometera um homicídio brutal?

            -Por que você fez aquilo? – Alice precisou perguntar. – Só aqui, entre nós, me diga o porquê.

            -Ele ficou fazendo piada sobre a minha língua presa – respondeu o rapaz, chorando ainda mais. – Ele não parava, estava bêbado, e eu também. Então, quando ele saiu do bar, eu nem pensei direito, só o segui e...

            -Então foi isso, só isso – murmurou Alice, perplexa.

            -Eu não sei porque fiz aquilo – confessou Flávio. – Aquele não era eu, foi tudo só um...

            -Um lapso – completou ela. – Eu sei.


 

Capítulo 5

Durante a madrugada, Alice acordou em meio a um pesadelo. Ela sonhou que havia matado outra pessoa e, depois, não conseguiu mais dormir. Irrequieta, ela caminhou até a janela da sala e observou a calmaria das ruas.

Apesar do silêncio, ela sabia que, em alguma daquelas casas, algum marido havia bebido demais e estava espancando a esposa. Alguns jovens trocavam socos e xingamentos em alguma festa da região. Alguma pessoa perigosa tirava a vida de um inocente em algum beco escuro, por algum motivo estúpido.

Em algum lugar, em meio àquela imensidão, Flávio, com apenas dezenove anos, estava preso e estava prestes a sofrer uma onda de atos violentos na cadeia, os quais, merecidos ou não, jamais o tornariam uma pessoa melhor. A violência não estava dentro de Flávio ou de pessoas como ele, estava espalhada por aquelas casas e prédios que preenchiam a visão de Alice, como uma chaga incurável.

Ela não era imune àquela chaga, não se julgava mais parte de um grupo especial de pessoas. Na verdade, este grupo sequer existia. A sociedade era apenas uma grande selva de pessoas falhas. Talvez as insônias de Diego não passassem de uma grande frustração, advinda de alguma reflexão parecida com aquela.

Alice lembrou do momento em que tinha a pistola apontada para a cabeça de Flávio, em que quase ceifaria a vida de um garoto. Um garoto criminoso, mas, ainda assim, um garoto.

“Mas você não puxou o gatilho”, uma voz falou em sua consciência. A mesma voz que a impedira de realizar o disparo.

Talvez ela não fosse imune à doença da violência, mas havia algo além disso dentro dela, alguma coisa que a tornava mais do que um mero animal. Talvez todas as pessoas também tinham aquela “coisa” dentro si e, com certos estímulos, poderiam torná-la mais eficiente, criando um mundo de menos lapsos e mais civilidade.

Alice bocejou, sentindo o sono voltar a dominá-la. No dia seguinte, ela dedicaria algum tempo a investigar aquela “coisa”, mas se, naquele momento, pudesse nomeá-la, diria que era humanidade.          





Conto escrito por
Marcelo Cruz

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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