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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 2x09 - De Quem é o Corpo?

Conto de Gilberto Lobato Vasconcelos
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Sinopse: Tarde de domingo. Corpo encontrado no rio Tietê (SP), na divisa entre dois distritos policiais. Como ninguém queria trabalhar, o corpo passou a ser empurrado de uma margem para a outra até se dissolver.


2x09 - De Quem é o Corpo?
de Gilberto Lobato Vasconcelos

            Minutos antes das cinco horas da tarde de domingo. 

Trim trim, trim trim, trim trim...

O telefone toca uma, duas, três, quatro, cinco vezes... e nada.

Instantes depois, entoou novamente, e no segundo toque alguém atendeu.

– Alô? – disse uma voz nada amistosa.

– É do Distrito Policial?  

– Sim.

– Quem fala?

– Quer falar com quem?

– Com algum policial.

– Está falando com ele – retrucou a voz propensa a não ouvir e nem a falar.

 – Afinal o que você quer?

 – Nada! Eu...

O policial interrompeu-o e disse: “Se não deseja nada, está ligando por quê?

– Só...

– Quer se divertir às custas da polícia? Olha...

– Não. Só quero informar que tem um corpo boiando aqui no rio Tietê.

– Em que lugar do rio? – perguntou o policial.

– Na margem quase em frente ao campo da Portuguesa.

– Tem certeza?

– Ué, claro! Acabei de ver o corpo. Acho até que é de cor morena, mas como as águas do rio são sujas...

– Homem ou mulher? – indagou o policial

“Ah, é mulher”, pensou consigo mesmo o informante e logo acrescentou: “Ih, não é, não!” Por fim, após olhar com mais atenção o corpo, concluiu: “Mas é claro que é homem!”. 

 – É homem – respondeu ao policial, acrescentando que o corpo parecia estar nu.

– Seu nome?

 – Xi! Não sei o nome dele, pois não o conheço.

 – Olha, você está com brincadeira.

            – Seu policial, eu não...

 – Então, diga logo o seu nome. Não é você quem está dando a informação?

 – Ah! Agora sim, entendi. Meu nome é Zé.

  – Escuta aqui, seu Zé – resmungou o policial (logo readquirindo o equilíbrio da voz) – você está brincando com a polícia? Se for trote...

  – Não, eu lhe juro, não estou – interrompeu Zé, que sem esperar o fim da pergunta acrescentou: “Vem logo que vai escurecer”.  

­     – O quê?

O telefone foi desligado ou a ligação caiu fortuitamente antes que o policial  alertasse Zé de que passar trote na polícia é uma contravenção e pode dar cadeia. 

O telefonema quebrara o silêncio na delegacia: um plantão calmo naquele final de tarde de domingo. O delegado, após o almoço, cochilava em uma sala e sonhava com o fim de seu horário de serviço. O escrivão que acabara de atender ao telefone era a única alma viva no distrito policial, inclusive se ostentava na cadeira do Dr, porventura antecipando uma aspiração. Na porta da delegacia um cachorro havia se acomodado e também tirava sua soneca. O escrivão acendeu um cigarro, saiu até a porta do distrito e ali ficou tragando o tabaco; olhou para o cão e até cogitou em acordá-lo, mas desistiu. “E o delegado, eu acordo ou não?” Pensou uma vez, duas vezes... e, por fim, decidiu despertar a autoridade, porém sem a certeza de que iria agir por dever ou por sacanagem. Bem que poderia esquecer o telefonema, ninguém ficaria sabendo. Até poderia ser um trote.

O escrivão, já que tinha decidido não pactuar com a sonolência do delegado, retornou para o interior do distrito policial e seguiu até a sala de repouso do Dr. Abriu a porta com toque silencioso e caminhou nas pontas dos pés como se fosse um bailarino, pois tinha receio de assustar o delegado que nunca tirava a arma da cintura, mesmo quando não trabalhava. Abeirou-se e então percebeu que seus gestos haviam sido desnecessários, pois os roncos do Dr. ocultariam qualquer ruído que fizesse. A autoridade alternava o zzzzzzzzz! pelo silêncio.

– Dr., com licença – disse o escrivão com delicadeza –, tem uma zica para nós.

O homem, nada de acordar. Só zzzzzzzzz!

– Dr. – importunou o escrivão dando um leve toque no ombro do delegado.

Intimidado e já levando, automaticamente, a mão à cintura, o delegado foi alongando os olhos devagarzinho, passou a mão no rosto, soltou um off!, olhou o relógio de ouro no pulso e interrogou:

– O que foi? Faltam menos de três horas para encerrar o meu plantão!

– O nosso, não é, Dr.?

– Sim, mas o que é agora? Na parte da manhã já foi uma agitação danada –  resmungou o delegado, colocando a mão direita nas costelas. – Ufa, como dói!

 – Um cara, um tal de Zé, ligou e disse que há um “presunto” no rio Tietê.

 – Sei..., mas será que é nossa área?

 – Pelo que ele disse, sim. O corpo está na margem, perto do campo da Portuguesa.

– Pegaram o telefone dele?

– Não Dr., o tal de Zé desligou ou a ligação caiu. Acredito que tenha telefonado de um orelhão, pois ouvi barulho de caminhões e de buzinas.

 – Hum, talvez já tenham matado algum torcedor! Passam alguns minutos das cinco horas, o jogo está...

 – Só se mataram o cara ontem, Dr., pois aos domingos é difícil ter jogo no Canindé. E o time da Portuguesa...

O delegado, ainda com cara de sono e sem alento, conservou-se no sofá. – Ufa, como dói – reiterou, colocando novamente a mão direita nas costelas, para, após, tomar uma decisão:

– Faça o seguinte: avise os investigadores e mande eles irem lá dar uma espiada. Talvez possa ser engano. Aliás, tomara que seja...

– Dr., só que tem um problema: eles saíram, já faz um bom tempo. Disseram que iriam dar um giro e que retornariam logo. Mas até agora...

– Ora! – ressalva o delegado. – Faça contato via rádio e os avise.

– Sim, sim senhor.

O escrivão, após muita insistência, conseguiu se comunicar com os investigadores. “Na escuta...”

Sem informar onde estavam e a contragosto, os dois policiais ouviram o recado do colega, que enfatizou ser ordem do delegado. Com as informações, eles foram diretamente para o local indicado. Desgostaram, mas submeteram-se à vontade do Dr., embora não acreditassem que a função de policiais é a de missionários encarregados de combater a barbárie em benefício da civilização. Parecia que a vida funcionava para eles como se a morte não existisse.

            Quase uma hora depois, os investigadores retornavam ao distrito. Confirmaram o encontro do “presunto” e complementaram com novos detalhes os informes que já tinham passado via rádio.

O delegado, ansioso, ouviu e perguntou:

– Então é verdade – pigarreou e continuou –, vocês viram o corpo?

– Positivo, Dr. – respondeu o investigador (moreno, alto e forte, que devia ser o encarregado dos tiras). – Embora as águas não sejam da cor da esmeralda, deu pra ver o “presunto” boiando perto da margem do rio, apenas de coruja. O senhor é pé-frio –  ironizou o policial.

– Afogamento? – indagou o delegado, com um semblante nada amigável.

– O menos provável, Dr. – contrariou o investigador, dando a entender que se tratava mais de uma pendenga entre bandidos, um acerto de contas...

– Mais um malaco foi para o saco – disse com desprezo o Dr.

– Pode ser – palpitou o outro investigador (da velha guarda, branco e estatura média, rosto quadrado e cabelos pretos) –, tudo indica que foi uma treta e sentaram o dedo nele. Algum gaiato que não soube a hora de cair no mato e virou mula de padre. Agora não foi possível saber se ele foi atingido na fumaça da pólvora ou sofreu uma cesariana.

­– Enfim, comeu gambá errado – enfatizou o investigador moreno, completando:

 – Pode ser que houve alguma água suja e o dublê de malandro...

E foi mais longe.

– Até no Paraíso teve crime.

– Vocês ouviram via rádio? – indagou o delegado.

– Caim matou Abel, não foi Dr.?

O delegado fez um olhar nada agradável.

À medida que ouvia suposições, numa linguagem apropriada, o delegado, que já havia saído de sua hospedagem, andava pra lá e pra cá no plantão sob os olhares da equipe. Olhava insistentemente para o relógio.  De repente predominou um minuto de silêncio. Contemplativo, como um filósofo, o delegado começou a meditar naquela tarde de verão, mais propícia para molhar a garganta com cervejas. Um mosquito pousou em sua testa, mas, ágil, conseguiu escapar antes de ser massacrado por um tapa.

 Ar, o delegado precisava respirar, sentir alívio. Sentia sufocado o descanso planejado para após o trabalho. Caminhou até a porta do distrito e saiu com os passos lerdos. Por pouco não pisou no cachorro radicado ali na porta como se fosse o segurança da delegacia. Entrou por um corredor lateral e, com passos lentos, foi até ao fundo do prédio do distrito.

Esforçava-se. Precisava encontrar um desfecho para o caso do cadáver, mas que correspondesse ao seu desejo.

Olhou para o céu, que por estar muito alto não respondia suas indagações, mas dava sinais de que, logo, iria escurecer – um domingo típico de verão: sol, calor e possíveis pancadas de chuva. Gotas de água viriam a calhar.

Como seus pensamentos não ultrapassaram o muro da delegacia, resolveu mudar os passos para retornar.  Assim que se movimentou, sua mão, por instinto, tocou num pedaço de bambu de uns quatro metros. Sorriu, pois teve a iluminação e tomou uma decisão.

Agora com os passos ágeis, voltou para o interior da delegacia, com um novo semblante. Imediatamente, chamou o policial (moreno), o encarregado da equipe de investigadores, até a sala onde cochilara. Conversou com ele o quanto antes e lhe deu algumas instruções.

Um sorriso sarcástico contraiu os lábios do policial, que exclamou: “Seja sincero, doutor, é isso mesmo que deseja?”

O chefão deu uma forte respiração e respondeu:

– Vai dar tudo certo, vai... Boa sorte.

– Cuidado! – advertiu ainda o delegado.

              O investigador, com uma corrente de ouro que cabia em dois pescoços e valeria uma fortuna no setor de penhora da Caixa Econômica Federal, na praça da Sé, chamou o companheiro e disse:

– Parceiro, temos uma missão.

O colega olhou no relógio (Omega, do tipo usado por James Bond e o primeiro relógio usado na Lua) e balançou a cabeça, expressando seu desagrado.

– Coragem... Vamos! – bradou o investigador moreno. Em seguida, foi em direção ao fundo da delegacia, onde pegou o pedaço de bambu.

– Vamos pescar? – indagou o colega, que, após mais de 30 anos de polícia, pressentia que iria participar de algo inusitado. 

– Ah! Ah! Sim, um peixão – foi a resposta irônica.

– Está bem, está bem – concordou. – O que vamos fazer?

– No caminho lhe conto.

 – Pelo visto, parceiro, vamos ser a fôrma para o pé do Dr.

  – É por aí...

Logo, eles entraram na viatura, ajustaram o bambu no veículo, e saíram para cumprir a missão.

O escrivão, bem-intencionado, mas alheio ao plano do delegado, indagou:

– O Dr. quer que eu já tome algumas providências para agilizar a ocorrência? Quer que acione a perícia...?

O delegado, com um olhar que acusava o escrivão de agourento, num tom crespo advertiu: 

– Sua função, agora, é outra: não atenda mais o telefone, hoje – contestou o delegado com um olhar de repreensão. E ainda murmurou: a polícia não é um ofício, é uma causa.

Sem nada entender, o escrivão ficou mudo, enquanto o delegado rezava secretamente para que seu plano desse certo.    

Eficiente, o trabalho de engenhosidade fora concluído. Quarenta minutos depois, a dupla estava de volta.

– Dr., tudo certo. O Dr. pode fazer a festa e soltar rojões.

– Posso ficar sossegado? – inquiriu o delegado, que perdera o sono e permanecera no plantão com o escrivão.

– Sim, tudo em ordem – assegurou o investigador, entusiasmado como se houvesse descoberto um novo talento.

 – Boa!

 O delegado procurou reconfirmar a informação para sanar de vez qualquer dúvida. 

– Certeza? Ninguém viu?  Sem testemunhas? Sem alarido?

– Positivo Dr. – afirmou o investigador da corrente de ouro. – Já estava escurecendo e no local passavam caminhões e carros em alta velocidade. Parecíamos dois pescadores. Nós tivemos um pouco de trabalho porque o bambu, o nosso aríete, era curto e a correnteza não colaborava. Se tivesse chovido...

– Oxalá, tudo corra bem! – pensou o delegado, olhando para leves nuvens que manchavam superficialmente o azul infinito.

O delegado olhou no relógio e calculou o tempo que faltava para mudar a equipe de plantão e fez um desejo: “Valha-me Deus!, espero que esse telefone não toque mais até o fim de meu expediente”.

Trim trim, trim trim...

Trim trim, trim trim...

Depois de muita insistência, um dos policiais atendeu, pois poderia ser algo que lhes interessasse,

– Alô! É da delegacia?

– Sim. É da delegacia, sou policial, qual o problema?

– Sem problema. Olha, seu policial, estou ligando para informar a vocês que tem um corpo no rio Tietê.

 –Tem certeza?

 – Sim, eu tenho.

 – Tudo bem – disse o policial, indagando de que lado do rio estava o corpo.

 – Sabe, seu policial, é estranho, muito estranho. O corpo, há três horas ou um pouquinho mais ou pouquinho menos, estava na outra margem, à direita no sentido bairro, mas agora o estou vendo na margem oposta. E a correnteza não está tão forte, ou nem existe mais, para arrastá-lo. E, como o rio é divisa de distrito, estou ligando para a sua delegacia. O corpo agora é de vocês.

– Como nosso? – indagou o policial.

– Explico melhor, seu policial, a ocorrência é de vocês.

– É, talvez, vamos averiguar. – Qual o seu nome?

– Meu nome é Zé.

 – Como é? Alô! Repete novamente, a ligação está ruim e o barulho de caminhões e buzinas está...

 – É Zé.

O telefone emudeceu. O policial deduziu que a ligação era feita de algum orelhão na marginal Tietê. Não deu importância à informação, pois já estava quase na hora de outra equipe assumir o plantão.

Pouco depois das vinte horas, novas equipes já ocupavam os plantões das delegacias.

 – Alô, é da delegacia? Olha, o corpo está de volta.

 – Que corpo? Quem está falando?

 – É o Zé.

 – Que Zé?! Que corpo?!

 – Um corpo que vai e vem. Não sei como ele se move nas águas paradas do rio, pois morto não nada. Acho que já liguei umas quatro vezes, duas para essa delegacia e duas para outra. Ora, ele está do lado direito, ora do lado esquerdo. E minha voz já está rouca.

– Ó seu Zé, você liga para as delegacias para brincar? – questionou o policial. – O mundo desabou aqui no plantão. Não temos tempo para brincadeira. Trote dá cadeia seu Zé – lembrou o policial.

– Olha, senhor, não estou brincando, é um corpo que se movimenta na água. Uma hora está numa margem, outra hora está na outra. Desde a tarde, ele vai e vem. Agora está na margem direita no sentido bairro – lado do campo da Portuguesa. É área desta delegacia, não é?

– Como você consegue ver o “presunto” se está escuro? – inquiriu o policial.

– Com o meu farolete e ajuda da Lua. E também já sei de cor para onde o corpo vai e para onde ele vem.

Tomou um fôlego e continuou.

 – A dúvida é que o corpo aparenta estar diminuindo. Agora, parece de um anão.

– Diminuindo! Anão! Que história é essa? – questionou o policial.

– É isso mesmo...Também não sei. Mas que está encolhendo, está – respondeu Zé

– Está bem, Zé, vamos averiguar. Mas se for trote...

 – Já sei. É contravenção, posso ser preso e condenado a...  (“Uai! é o que todo mundo diz... Pô, e a gente só querendo ajudar”).

  – Que foi, ficou mudo? – perguntou o policial, agressivo.

 Silêncio.

 O telefone foi desligado.

Tarde de terça-feira. Feriado (Finados).

 Trim trim, trim trim, trim trim...

O telefone tocou mais umas quatro vezes até que alguém atendeu.

– Alô...

– É da delegacia?

– Sim.

– O corpo sumiu.

– Olha, não é o Zé?!...






Conto escrito por
Gilberto Lobato Vasconcelos

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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Proibida a cópia ou a reprodução



Sinopse: Um jovem luta para sobreviver no caos da selva de pedra. Seu maior desafio é dar um vida melhor para sua família, que mora em uma área de invasão. Mas qual destino lhe aguarda?


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