2x07 - O Caso dos Bebês Gigantes
de Nei Rafael Ferreira Filho
Abriu a porta
do apartamento, deu às costas e atirou as chaves na mesa do console. De um
chute vindo de trás, bateu a fechadura, jogando no sofá o corpanzil vencido
pelo sono. Dormiu profundamente. De olhos cerrados, os globos moviam de um lado
a outro enquanto imagem era formada na funda zona abissal do cérebro.
Apareceu reluzente
sonho:
Um menino, de uns cinco
anos, surgiu com uma lata para guardar biscoitos debaixo do braço. Uma rápida
conversa animou o sonho daquela noite.
-- Dá-me tua mão, menino recém chegado.
– pediu o homem, enquanto se fez mais presente e em aproximação, trajando
elegantes vestes brancas e ainda mais, pois tinha um sorriso amável.
-- É uma escada enorme! – exclamou
surpreso, entregando a mão ao homem de branco e, ao mesmo tempo, cuidando para não
deixar a caixa de lata escapar-lhe e tombar ao chão coberto de névoa.
-- Subiremos agora. Não tenha medo... –
acalentou o guia.
Olhou a
paisagem muito clara ao redor e, tomado de coragem, resolveu dizer suas últimas
palavras num registro de voz embargada:
-- Moço: estamos no céu? A escada
é sem fim. Bate nas nuvens. Aqui é o céu?
O homem o olhou
de cima, num olhar manso, marejado em bondade. Mas com o indicador apontou para
os degraus. Disse-lhe:
-- Você está certo. Aqui é o seu novo
começo. Subirá sozinho daqui em diante.
O menino deu alguns passos para
frente e perguntou se ele não queria ficar com a lata.
-- São meus brinquedos. Aceite um...
Vou tirar a tampa para ver.
No sonho
formado, em lampejos de cenas sobrepostas, o menino se afastou, a lata foi
parar às mãos do condutor. Aberta a caixa, o sonhador pode ver o que havia dentro
da lata de folha de flandres.
E o sonho se
desfez.
Um
Ricardo chegou
ao Distrito Policial. Era uma manhã iluminada e os colegas o aguardavam para
reunião urgente marcada pelo Delegado Noronha.
-- Ele comentou o acidente dos carros e
moto, da noite de ontem, Ricardo... – adiantou a escrivã Celma.
O acidente da
madrugada anterior repercutiu na imprensa. Era o quinto em menos de dez dias.
Trafegando na avenida, automóveis eram surpreendidos por bebês soltos no
asfalto. Freavam bruscamente, ocasionando choques involuntários entre os
veículos. Mas o da noite anterior, já alta madrugada, envolveu uma motocicleta.
A freada brusca do condutor o arremessou com impressionante impacto para junto
à grade do acostamento.
-- O bebê da madrugada estava em pé.
Dessa vez foi diferente. Teremos de anotar isso – enquanto o assessor informava
da ligação telefônica em sua sala.
-- Mas são bonecos! – revidou o
Comissário Andreas.
O delegado servia-se de
café e enquanto adoçava a bebida, pôs-se à frente de Andreas:
-- Os demais estão sempre deitados. São
perfeitos. O brilho dos olhos de vidro desses bonecos de bebês... – discorreu
fazendo um sinal com a mão de que não poderia atender ao telefone – Você conhece
outra medida a evitar não nos confundirmos com tamanha perfeição?
Ricardo anotou num
bloco as impressões recebidas das fotos do PowerPoint projetadas
no screen da sala de reuniões.
-- E você, Ricardo? O que tem a dizer?
O último boneco estava próximo de sua casa – destacou Noronha ao observar numa
planilha as graduações de seus auxiliares. E continuou a preleção:
-- Teremos de fazer ronda... São
ordens... A estatística impõe mais atenção. Ou dançaremos... Darão o caso para
o Quinto Distrito! Atenção! Após a aparição dos bonecos perfeitos ocorre
um homicídio!
Celma foi
servir café ao colega Ricardo. E gracejou-lhe ao pé do ouvido:
-- Pelo visto a noite foi boa... Não
queira te olhar no espelho, ‘Sr Ricardo prestes a ser promovido a
Comissário’! – ela destacou, numa saborosa simpatia, a de
reconhecimento.
Mas ele
suspirou e rebateu:
-- Tive uma grande noitada! Uma noitada
de sonho revelador! Isso sim. Foi um sonho estranho... – disse, aceitando a
caneca de café com a estampa do cão Pluto.
-- Então beba o teu café! O Pluto e o Mickey são grandes detetives, Comissário Ricardo!
Dois.
Anoiteceu na
cidade desprotegida. As ruas esvaziaram. E mesmo os parques, normalmente
povoados de mendigos e andarilhos àquela hora, sucumbiram à ordem de recolher.
A polícia fazia a ronda, fosse através de montaria ou, de automóvel. Os guardas
municipais trafegavam livremente, anotando placas e os horários de veículos
estacionados em locais proibidos.
Na escadaria do
Viaduto Otávio Rocha a moça cega tentava retornar para seu apartamento no
edifício Ponche Verde, que ficava ao sopé do viaduto secular. A bengala
flexível batia na calçada de pedra portuguesa, desviando do gradil dos bueiros,
auxiliando sincronizar os passos junto às paredes e no meio fio. Mas outros
passos seguiam-na. E a moça percebeu. Raciocinou: não pode ser um colega do
curso. Procurou acelerar a passada. A atitude ajudou, o som reverberado dos
passos que a seguiam foi dissipado. Segundos depois, aliviada, sentiu uma
pessoa muito próxima. Ela parou.
-- Quem é? Por favor! Sou cega! – o
calor do corpo era humano. Ela respirou profundamente e girou a bengala em
torno de si. Adiantou-se mais e, finalmente, alcançou a entrada do prédio. Mas
ainda sentia o corpo à sua volta. Trêmula, abriu a bolsa e remexeu-a, atrás das
chaves. E a deixou cair. Tateando o chão, tocou nos dedos dos pés de quem a
cercava.
-- Por favor... Leve tudo... Por
favor... Sou cega – suplicava a moça desprotegida da bengala, num choro
tremido.
Ao
erguer-se, a mão da desconhecida companhia a segurou com muita força, terminado
por erguê-la e, como uma garra, se apoderou do pescoço. A moça soltou um breve
sonido, esguichando o ar que lhe restava. Agora, as duas mãos apoderadas sobre
a cabeça e o pescoço, trataram de dar-lhes movimento girando-os com brutalidade
a ponto de fazer estalidos do deslocamento das vértebras, quebrando-as com
facilidade, finalmente.
Três
A
próxima reunião foi para delimitar as áreas de buscas. Através de ocorrência em
boletim policial, os vizinhos do edifício Ponche Verde noticiaram outro
desaparecimento. Deram falta da cega. Ricardo atendia casos de extorsão enquanto
conferia as mensagens no whatsapp, enquanto Celma cuidava digitar e garantir
registros para estatística. Havia no ar esforço conjunto a evitar a
desclassificação e perder a chance de notoriedade do caso dos bonecos bebês.
--- Outro
bebê apareceu! -- anunciou o inspetor Otávio, violento policial.
Mas
as cobranças e pressões do serviço, não limitavam o cenário de crescente
tensão. O bebê era outro boneco, envolto num xale verde, e com a chupeta entre
lábios lustrosos. Do mesmo modo como os anteriores: atirado na pista de
rolagem, de movimentado tráfego, por conta das bruscas freadas.
Ocasionando acidentes e ferimentos aos condutores.
--- É
controlar o entorno da cidade... Corpos verdadeiros aparecerão – declarou
profética Samara, Dra. Samara, a psicóloga e namorada de Ricardo.
A noite
mais longa do século aconteceu na última semana de junho. O ar estava carregado
e rescendia a fumaça das fogueiras de São João. Na ronda daquela madrugada
interminável outro bebê foi encontrado. A princípio duvidaram tratar-se
de um bebê. Era enorme. A viatura acionou a sirene a impedir curiosos. Mas era
alta noite, a avenida comportava a névoa espessa de brancura cintilante, sem
viva alma no caminho, cruzada por cães vadios. Os dois policiais desceram
e de lanternas olharam pasmos.
--- Mas o
que é isso? – surpresos, foi de imediata reação ao depararem com uma moça, com
um chocalho na mão esquerda, e forrada nas partes íntimas em fralda descartável
e uma calça plástica.
Reunidos
com o Delegado, na manhã de expediente, no necrotério identificaram o corpo
como o da cega do prédio próximo ao Viaduto Otávio Rocha.
--- O Chefe manteve o
caso conosco – informou o Delegado à equipe – Estamos lidando com o caso do
bebê gigante.
--- Será dos bebês
gigantes... – ironizou Samara, na esteira, ao lado de Ricardo, exercitando na
academia Power Twist após um dia estressante.
Mesmo
no calor do anoitecer, entre lençóis desfeitos, junto aos músculos da psicóloga
Samara, o escrivão quase Comissário tinha a imagem fantasma de Gládis em
perfeita recordação. Ela residia numa casa pequena, na superfície da
mente. Cuidavam de um jardim. Plantariam uma horta. E ainda fariam um
canil. A certeza dos sonhos, dos pedidos
não atendidos e da fuga dessa mulher para o mundo póstumo era o primeiro
pensamento ao despertar. E o último, antes de adormecer.
Outro
bebê boneco apareceu no caminho da noite arrastada. E jogado bem às barbas da
câmara eletrônica do poste alto, igualmente serviçal à luz pública.
--- O
bebê encontrado dessa vez tem outro matiz... – destacou o
Delegado, sempre cuidando o esforço de usar palavras eruditas. Ele que, às
vezes, declamava Omar Khayann ou, Manuel Bandeira.
O
matiz era não ter os olhos. O boneco perfeito em trajes de bebê lindo, não
tinha olhos. Os globos oculares de vidro.
---
Ricardo, pergunte para Samara o que significam os nossos bonecos agora, sem
olhos?
O
modus operandi se altera. E acontece conforme o desejo de dialogar. O
homem que age através de símbolos deseja conversar com a gente – deduziam.
Samara, contudo, mais uma vez da academia Power alertou:
--- Vai piorar.
Quatro.
Os
dias de julho trouxeram calor fora de época, e o período noturno exigiu atenção.
Diversas chamadas telefônicas, trotes e verdadeiras, anunciavam a descoberta de
mais bebês espalhados pelas ruas da cidade. Um bebê gigante foi encontrado
junto às docas. A polícia técnica chegou com o pessoal munido de luvas e
coletores de amostras. Dessa vez era um homem, meia idade, perfeitamente
vestido como um bebê recém saído da maternidade.
--- Impressiona o detalhe. Quem comete
essa atrocidade pensa em tudo – anotou o jornalista de plantão.
Ricardo
ao saber da descoberta de outro bebê gigante, calçado em fraldas e calção de
plástico, portando todos possíveis aparatos - inclusive babador -, estava no
gabinete do psicólogo.
--- Os sonhos de seguidas noites,
doutor, eu consigo ver a caixa de lata, sabe? Dessas latas de guardar biscoitos?
Quando abre não consigo memorizar o que contém.
--- Talvez um significado simbólico...
– comentou o psicólogo, na despedida do paciente.
--- E quanto a Gladis? Ela faleceu ou
me deixou? Qual opção?
--- O senhor terá de avaliar uma
escolha. A perda tem de ser trabalhada. É um processo erosivo. Vai gastando, a
forma virá. A verdade aparecerá. Para você.
Do
levantamento da coleta de dados a respeito dos bonecos como bebês, espalhados
pela cidade, mostrava pouca sintonia na relação bonecos e gigantes, a cifra
interminável de homicídios. Os gigantes eram homens de meia idade, mulheres
magras, travestis, adolescentes embriagados a serviço do desejo.
--- Curiosamente há uma nova fase –
destacou o chefe de policia à imprensa – Se antes eram mais bebês bonecos
jogados às avenidas, muito semelhantes a um bebê de verdade, agora passamos a
contar com mais pessoas mortas e vestidas como bebês.
Maria
Teresa, a atuante repórter da Rede Notícia perguntou, sem resposta clara, como
o criminoso conseguia transportar os cadáveres vestidos de nenês sem serem
vistos pelas câmaras de rua? A resposta foi evasiva:
--- A perícia indicou, ou dá indício de
ajuda. O agente que comete essas barbaridades tem ajuda.
Na sala
de reuniões, o Delegado atravessou o protocolo. Convocou a equipe:
--- Trouxe os laudos periciais, e as
fotos. Mostrarei tudo. Ele age com as mãos enluvadas. Vestígios de borracha
foram encontrados no pescoço das vítimas. E, corante. São luvas de
supermercado. Dessas de lavar a louça.
Ricardo,
ao lado de Celma, pediu para não esquecer a recente conclusão da avaliação
criminalística:
--- É oportuno o questionamento do
policial da Quarta Classe Ricardo – anunciou o Delegado com o controle remoto
em punho – Observem as amostras... As marcas no pescoço, a marca das pressões
dos dedos...
A
mão que age tem os dedos curtos, pequenos.
--- Ambas as mãos agarram a
vítima com muita pressão, de uma força incomum mesmo para um adulto – destacou
Otávio.
--- Dedos grossos e curtos. A
comparação feita, nosso psicopata é portador de nanismo. Poderá ser um anão –
finalizou a escrivã da segunda classe, Celma.
No
final de semana, na sexta-feira, Ricardo exausto aceitou jantar com Samara.
Após a academia, onde praticavam, cuidariam relaxar. Ela, apaixonada por
halteres, era o melhor exemplo de corpo são, mente sã. No sábado, visitariam o
parque Moinhos, levariam os cachorros a um passeio, o namorado queria desligar.
Somados os bebês bonecos em plena avenida, dia sim dia não, como uma praga, os
homicídios declinaram. Houve calmaria. Anões criminosos em liberdade
condicional foram investigados. Antunes, de um metro e quinze, famoso por sua
força, era traficante contumaz. Foi preso. A polícia varreu becos, vilas
e morros. Prendeu adolescentes de baixa estatura. E lojas de artigos de enxoval
de bebês recebiam visitas de investigadores. Uma onde de sossego transmutou a
cidade dos bairros portugueses e a zona judaica prosperou. O lado nobre,
constituído por mansões românticas e arvoredos circunspectos permitia o passeio
a pé, mesmo à noite, para a elite que não tinha culpa de ser elite, beber do
frescor do ar limpo noturno.
--- Samara – pediu Ricardo, ao tocar no
rosto da namorada -- Acho que está na hora de ser apresentada à minha família.
É uma família pequena.
Ela
acenou, consentiu. Mas queria ver o pavor terminado, antes de tudo.
O sono
tocou-lhe numa inundação de imagens sobrepostas, de cores vivas e de intensa
claridade. Apareceu no caminho Gladis, no apartamento, segurando uma sacola.
Pedia para entrar. E desanuviou. Num lampejo de frações diminutas de
segundos, reapareceu o sonho do menino, da escadaria subida aos céus. Olhou a
lata. Tinha uma faixa azul. Viu a lata aberta. E o que continha.
Já
acordado, após o café, trataram de preparar a saída dos cachorros. Num armário
emparedado, observou diversas coleiras de cães dentro de uma gaveta. E mais as
guias. Havia uma, enorme, destinada a raças mais robustas. Embora cuidasse apenas
de cães pequenos, na certa a namorada psicóloga tomou emprestada de algum
colega. Pouco perguntava, Samara queria saber dos sonhos de Ricardo. Não é
ético cuidar dos assuntos de outro profissional. O policial de terceira classe
comentou o sonho com cães. Lembrou a ela: no meu sonho, tinha
enormes coleiras em casa. Samara escutou e, de boca curta, riu-se.
--- Querido... Afinal, o que mais viu
nesse sonho? Esse seu sonho das coleiras? Coleiras grandes?
Falaram
pouco no que restou do final de semana. Mas a notícia chegou sob o alvorecer e
dominou ao longo da semana. Impactante: dois bonecos como bebês foram
descobertos nas imediações do estádio de futebol. Eram perfeitos. Mais ao
aprofundar da noite quente, dois corpos, o de um homem e de uma mulher foram
encontrados, com touca, babador, chupeta e em fraldas. Já em adiantado estado
de decomposição.
--- A ação foi rápida. Equipe! A
novidade? Vamos, diga a eles, Comissário Cleber! – ordenou o Delegado numa
irreconhecível irritação – Diz e mostra as fotos!
Os corpos
não tinham sangue.
Samara
pediu para ser desligada da equipe. A crescente aparição dos bebês e as mortes
seguidas a distanciava da zona emocional não fronteiriça à loucura.
Ricardo, consultando o psicólogo festejou recordar o conteúdo das latas de
biscoitos:
--- Cinco pedrinhas. Apenas pedras,
recordo-as. Rochas como seixo rolado. Bolinhas de gude. É o que tem
dentro. Pedaços de rocha e bolinhas de vidro.
Ao
findar a jornada, resolveu telefonar para Samara. Mesmo após dúzia de tentativas,
ela não atendeu. Tomou a viatura e foi até o apartamento. Ao chegar à portaria,
esvaziou os bolsos. Estava sem as chaves. Mas sabia que não as havia perdido.
Somou os últimos momentos e, do sonho intranquilo das duas noites anteriores,
decidiu combinar a imagem dos seixos rolados da caixa de biscoitos da Pedreira
Asmuz, de pedra de gres, da Zona Leste. Seguiu até lá.
--- Por que a coleira de um Rottweiler
enorme?
Cinco
A viatura
percorreu avenidas confusas, enquanto o rádio tocava programação da Antena Um.
A mente congestionada recordou os primeiros bilhetes de Samara deixados à mesa
do café: “Um distanciamento vocabular, sintático, filológico único, sem matiz,
cinza, um lugar vazio.”
Recompôs cenas
dos encontros. O primeiro jantar. Recordou frases e cochichos da repartição
policial, de que “iria piorar”. O clube de halterofilismo, a musculatura lisa,
brilhosa. Queria olhar o sonho da caixinha de lata de guardar biscoitos, onde o
delírio permitiu guarnecer seixos rolados, inspirados nas rochas da famosa
pedreira abandonada. Celma o seguia a regular distância. No carro da
frente, Ricardo tinha perdido o cálculo definitivo de suspeitos. Mas o espesso
fio de cabelo negro encontrado junto ao último bebê gigante o pôs na contramão
das evidências: alguém com demasiado conhecimento em psicologia está por trás
da engenharia de todos esses crimes bárbaros e silenciosos, de autoria
intelectual desesperada.
A
pedreira era um lugar ermo, fétido e povoado por animais dispersos do trânsito
dos patamares ao sopé. A terra era seca. A mesma terra seca do pára-choque do
carro da Samara, terra de estrada de chão batido. Ele saiu a percorrer os
estreitos desfiladeiros, as árvores eram nuas e havia no ar o cheiro podre do
que sempre está parado. Celma mantinha boa distância --Como não seguir esse
desmiolado, pensou, jamais anda armado... Sim, um perdido na vida é esse
Ricardo! – esbravejou pesando o pé no acelerador.
Avistou
casebres e casas outrora destinadas à função aos capatazes e mineradores.
Estacionou numa espécie de praça, na descida mais funda da pedreira e o
silêncio do lugar, no conjunto total da bruta paisagem foi duramente anunciado
por uma sensação de abandono completo. Gracejou às leituras dos plantões de
inteiras madrugadas do início da carreira, junto às celas, por ocasião das
acanhadas idas até Nietzsche: “A humanidade olha para o abismo e o abismo
também a olha”.
Das
muitas casas ali existentes, uma chamou mais a atenção comparativamente ao
conjunto, alinhadas em rígido padrão, seja por excessos de lixo no entorno,
fossem as demais, ocupadas por máquinas abandonadas em seus pátios. A
construção tinha certo ar de uso contínuo.
Adentrou
dando chutes nas portas. Pela primeira vez lamentou estar desarmado. Um
policial desarmado. Meditou sobre o possível desinteresse em prosseguir. Tinha
sonhos premonitórios. Num acesso de limites da loucura, conheceu Samara por
indicação de colegas. Ela foi-se aproximando. Até o ajudou a recompor a perda
interminável de Gladis, a sua perdição. Que era morta. Que era viva. Que era
morta. Que era em vida. A psicóloga, antes do namoro, o orientava:
--- Gladis só vive em tua recordação.
Precisa vencer isso. E enfrentar. Ela mesma disse, e você retratou o que ela
disse. Lembra? O que você contou a mim, Ricardo? --- Ela disse assim: “você vai
ter de esquecer-me.”
Ao entrar na
cozinha, tomou a escada dos fundos e desceu. Abriu uma porta e observou
recipientes coletores de sangue no caminho. Espalhado pelo chão, coleira de
cães, dos grandes. E correias, tiras e focinheiras. No porão, onde agora
estava, tinha outra porta. Aos poucos se aproximou. Passo a passo, à medida que
se aproximava da maçaneta escutava gemidos e grunhidos, como se alguém
estivesse amordaçado. A escuridão do lugar não o impediu de bater com o pé numa
caixa, a qual se abriu. Diversas fraldas enroladas desalojaram-se, como que
despejadas, a buscar espaço e ventilação, estavam socadas havia muito.
O próximo passo
o demoveu. Trêmulo, abriu a porta. O olhar construiu a cena. Deparou com uma
mulher baixa, de braços grossos, curtos e mãos pequenas. Com cabelo pela
cintura, a mulher tinha pelos pelo rosto, olhos enormes e não falava. Estava
acorrentada, presa pelo pescoço por uma coleira e amarrada a uma argola fixada
à parede. Ao se aproximar, ela avançou na direção do policial, esticando os
braços e apertando as mãos ao mesmo tempo, numa velocidade espantosa, e com
demonstração de força, esticando a corrente a ponto de por em risco a
resistência da argola.
--- Um passo a frente ela quebra teu
pescoço...
Ricardo olhou para
trás, de dentro da escuridão, de onde surgiu a voz.
--- Por que, Samara?
Tirou uma pistola de
dentro da bolsa. Discursou sobre a monstruosidade e que, fatalmente ele teria
de optar: um tiro na nuca ou, as mãos garras de ferro de Zezé no pescoço.
--- Não tenho muito tempo. Preparei um
boneco em forma de bebê. Será você. E deixarei esse lindo bebê, sabe onde? Sim,
no Mont’Serrat, onde ela atualmente
mora. A tua Gladis! O bairro das ruas ornadas de Jacarandás
floridos.
Ricardo
foi obrigado a ficar de joelhos. Tentou negociar.
--- Como for será...
--- Como descobriu?
--- Somei as pontas deixadas por você.
A coleira, a musculatura, e tua aproximação. E o modo como previsse “vai
piorar“. Na cama você pedia para que eu a chamasse de Gladis! Mas também
soube de seus percursos na sala de controle das câmaras de vigilância...
Samara soltou
gargalhada. Disse que Zezé é fruto de sequestro. Eu a criei para solucionar
pendências soltas às ruas.
A
psicóloga encostou a arma na cabeça de Ricardo. Lamentou a falta de
entrosamento e que, afinal, ele faria companhia à amada.
--- Matei para aliviar... Aliviar o
falso mundo social limpo. Reconheço os excessos e as críticas pesadas,
por exemplo, no caso da moça cega. Ou do professor idoso... Chegou a tua vez!
--- Ela está viva. Está viva!
Ao dar o
passo final, Samara estalou os dedos. Disse “adeus Ricardo”. O estampido
metálico de tiro esguichou do grave ao agudo - o impacto derradeiro na
escura sala de aprisionamento do monstro mulher das noites silenciosas da
cidade atormentada.
--- Acabou – disse ele, para si, do som
barulhento ecoado de dentro de si, o policial amante da memória de fantasma, do
pensamento fluído por vagas ondas desnudadas do espírito, embrião e só embrião,
do sufoco que é a perda do ser.
--- Da próxima vez, leve sua arma, Senhor Policial Quase Comissário – anunciou Célia, que acabara de alvejar a psicóloga mãe de bonecos, guardiã da monstruosidade, parturiente de bebês gigantes mortos na cena crua da cidade das colinas, das almas e das ruas arbóreas a recordar o sonho, o amor, pessoas sem um realejo a prever, a desejar a completude dos céus.
Conto escrito por
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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