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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 2x01 - O Rei de Copas

Conto escrito por Caliel Alves
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Sinopse: Dever para agiotas nunca parece ser a melhor decisão. Após ser acordado pela manhã, o protagonista é levado por dois capangas de Antunes, maior contraventor da região. Para diminuir suas dívidas, ele terá que participar de uma arriscada competição. Quem perder terá que dá adeus a uma coisa maior que o dinheiro: a vida.


2x01 O Rei de Copas (Season Premiere)
de Caliel Alves

            — Acorda rapa!

            O metal frio deslizou pela minha têmpora. Estava deitado no sofá da sala, muito desconfortavelmente. Abri os olhos devagar. A porta da rua foi fechada com um baque surdo. Duas vozes diferentes discutiam, uma mais grave e lenta e outra mais juvenil.

            — Que foi?

            — Levanta, oh desvalido!

            Agora sabia quem era um  dos meus visitantes. Despertei por completo. Dois encapuzados tinham invadido a minha casa. Não dava mais para fugir.

            — Em que posso servir, cavalheiros?

            — Se meu chefe não precisasse de você, te daria uma coronhada que ia abrir teu cocuruto na hora.

            — Checa a casa, brou.

            O encapuzado continuou apontando a arma para a minha cabeça. O outro mais jovem vasculhava os parcos cômodos. Sentei no sofá. Espreguicei-me.

            — Baixa essa coisa, cara, não tem polícia aqui.

            — Vem patife!

            Com violência o homem que portava o 38, me ergueu bruscamente.

            — Para onde a gente vai? — arrisquei perguntar.

            — Pagar a sua dívida.

            Antes que pudesse ensaiar uma reação, sofri um enforcamento pelo outro rapaz. O capuz foi descoberto, revelando o rosto do meu velho conhecido. Não sei por que o mistério, a tatuagem tribal no braço direito já o denunciava.

            — Você sempre dá trabalho. Mas de hoje tu num passa, moral.

            — Não me diz que Antunes está igual traficante, matando os devedores?

            O enforcamento ficou cada vez mais forte. Arfava, tentei não perder a consciência. O braço direito do Antunes era o Marco. 1.80 metros de músculos anabolizados. Seu amigo pouco lisonjeiro ainda permaneceu desconhecido em minha memória. Fato é que quando você está de frente para o Marco, o que você pode fazer é se borrar.

            — Olha aqui, se tu num obedecer, morre.

            — Tá bom, tá bom — respondi obediente.

            Ele colocou uma venda no meu rosto. A última coisa que pude ver foi o rosto negro marcado por uma cicatriz no queixo. Fui arrastado como um saco de lixo pela rua até um carro. Puseram-me no porta-malas. Não pude ouvir nada por causa do barulho do motor. O carro fez tantos giros que acabei perdendo a direção.

            Nesse momento, comecei a pensar que ia morrer. Minha vida passou como um filme trash na minha cabeça. Casado, empresário, pai de dois filhos... O jogo me tirou tudo. Para jogar, cada vez mais eu pedia dinheiro a agiotas. Antunes era o que mais investia, e o que mais cobrava.

            Só sai do carro depois de mais ou menos duas horas. O porta-malas foi aberto. Jogaram-me no chão e depois me arrastaram até me deixaram de pé.

            — Opaí, o cara se mijou nas calças, mano.

            — Vem mijão.

            Não pude distinguir onde estava. Uma porta se abriu com um logo rangido. Empurraram-me ainda alguns metros, até que me fizeram sentar numa cadeira. Minhas mãos se apoiaram numa mesa de madeira com tampo arredondado. Ouvia mais três respirações entrecortadas.

            — Podem tirar a venda — trovejou uma voz na escuridão.

            Obedeci. Diversos refletores se acenderam automaticamente unido a uma grande gritaria. Fiquei atônito. Uma voz pediu silêncio num microfone. Era um homem vestido de gala, com terno chamativo.

            — Não me olhem assim. Vocês quatro foram convidados a participar do primeiro torneio: O Rei de Copas.

            Depois que voltei a enxergar, me vi num show business. Estávamos no palco de uma transmissão ao vivo pela internet. Havia câmeras, plateia, e um grande camarote. Notei que os expectadores não eram comuns. No camarote, o próprio Antunes assistia a tudo, me fez um aceno cordial quando nossos olhos se encontraram.

            No fundo, um telão dividido em quatro partes mostrava meu rosto e o dos outros três. Um deles estava sentado à minha frente, magro, assustado e tinha olheiras enormes, seu nome era Ricardo. Um barbudo e calvo estava sentado a minha esquerda. Sujeito grande e corpulento, vestia uma jardineira e tinha os braços peludos. Chamava-se Ferraz. Por último, Noronha. Parecia um sujeito altivo, vestia-se bem com terno azul-claro. O cabelo alisado escorria na pele morena.

            — Antes de começarmos, vamos deixar os técnicos falarem com nossos jogadores. Voltaremos a apresentar depois de um rápido comercial — disse o apresentador.

            Olhei para o teto buscando alguma referência de onde estava, mas os holofotes quase me cegaram. Marco veio ter comigo. Me chamou num canto, dessa vez não me agrediu fisicamente. Não esperei ele me falar.

            — Que negócio é esse de “O Rei de Copas”?

            — Desculpa, brou, ordens superiores. — Ele deu de ombros. Tava pouco se lixando se morreria ou não. — É melhor tu obedecer engravatado ali falar, quem sabe tu não sai vivo!

            — E o que é que eu tenho que fazer? — perguntei aflito.

            — Bom, ganhar de todos aqueles manos ali. — Apontou a mesa. Os três também conversavam cada um com o seu “técnico” reservadamente. — Depois tu pode ir.

            — Não confio em você, Marco. Nem no Antunes, mas que alternativa eu tenho? — pensei um pouco na situação. — Vamos jogar Copas, porque não Pôquer?

            — Desde quando vocês pinguço do Brasil joga pôquer? A aposta aqui é diferente, eles apostam em quem vai viver até o final. Espero que tenha muita sorte. Antunes gastou muito dinheiro em você.

            — Espere... Se ganhar eu poderei ir para casa livre das dívidas?

            — A gente alivia os juros.

            — Seu filho da...

            O galante apresentador nos convidou a voltar à mesa. Quando me virei para olhar, Marco já tinha sumido. Nos sentamos à mesa na mesma configuração anterior. Ricardo parecia um animal assustado, se aquilo fosse fingimento, o cara merecia o Oscar. O apresentador circulou a mesa nos estudando e depois numa explosão começou um monólogo:

            — Senhoras e senhores do crime organizado de todo o mundo. Com patrocínio do CV, PCC, Al Qaeda, Camorra, Yakuza, Tríade Chinesa e a organização que é o mãe de todos nós, a Gang de Chicago. — A cada nome a plateia gritava alucinada, mas no último, meus tímpanos quase estouraram. — Essa é a primeira transmissão a cabo do seu, do nosso programa favorito: O REI DE COPAS! Para você que ligou agora, mudamos a modalidade do jogo de cartas para se adequar aos nossos jogadores. Mas o sistema de apostas continua o mesmo pessoal. Explique para nós Evangeline, o nosso anjo da guarda das apostas.

            O telão exibiu uma loira vestida com um biquíni tão curto, tão fino, que não cabia nem na palma de um anão de circo. A boca carnuda, o corpo calipígio, as curvas acentuavam uma sensualidade que nenhuma mulher no mundo chegava perto. Os dentes se abriram num sorriso branco como um mármore de Carrara. Os olhos pareciam duas pedras de safiras. Em suas costas desnudas, um pequeno par de asas.

            — É isso aí Belo. O Rei do Pôquer para o mundo virou o Rei de Copas no Brasil. Para vocês que não sabem o que é Copas vamos explicar agora...

            Ela andava por um corredor até chegar à beira de uma piscina. Outras garotas que provavelmente já vi na televisão e nas passarelas, estavam com seios à mostra, os biquínis fio dental só podia ser visto com um bom esforço nos olhos. Jogavam, ou melhor, encenavam uma rodada de Copas numa mesa de bar.

            — O jogo de Copas é bem simples. O objetivo do jogador é ter a menor pontuação no final do jogo. Aqui as regras sofrem uma pequena alteração. No fim do jogo, todos os jogadores que alcançarem 100 pontos são fuzilados imediatamente. Perde aqueles que acumularem mais pontos durante a rodada. — Nessa hora os meus ossos congelaram, a plateia gritou enfurecida. — A nossa rodada inicial é formada por quatro jogadores que começam com treze cartas. Escolhem três cartas da mão e passam em forma horária para o outro jogador e recebe na posição anti-horária. Depois desse troca-troca gostoso, o jogo começa de verdade. O jogador que tiver a carta de dois de paus é o primeiro a jogar. — Depois disso, ela deitou na mesa e começou a deslizar a mão de unhas carmesim pelo ventre liso. Seus dedos longos e ágeis entraram no biquíni. Com sons orgíacos ela puxou a carta de dois de paus, seus olhos reviraram. — Aqui oh... Ah... É com você Belo.

            Nem o próprio Belo escapou de ficar boquiaberto. O telão se voltou a mostrar a mesa com nossos olhares dispersos. O sujeito esfregou o pescoço com uma toalhinha.

            — Com uma professora dessa eu repetia de ano o resto da minha vida. — Aplausos e trilhas de risadas explodiram das caixas de som. — Aquele que jogar a carta mais alta de um mesmo naipe em uma rodada é o ganhador. Ele inicia a próxima rodada. Só se pode jogar o naipe de Copas se em uma rodada anterior, um jogador em falta dos outros três naipes a tiver jogado como tapa buraco. Trapaça, levantar, abaixar-se, importunar o crupiê, retirar as mãos de cima da mesa são proibidos e punível com balas. O ganhador sairá são e salvo, com suas dívidas perdoadas.

            Nesse momento eu quase pirei. Foi tanta felicidade que eu coloquei as mãos na cabeça. Centenas de luzes vermelhas cruzaram o salão com baixa luminosidade. Devagar, depositei as mãos na mesa. Ao todo, vinte e duas miras de rifles de assalto estavam focalizadas em mim. Mais um pouco e eu viraria um queijo suíço.

            Belo chamou o crupiê, que na verdade era uma, vestia um terno branco e cartola. Antes de distribuir as cartas, circulou a mesa mostrando os seus dotes. A pele de ébano, seios fartos, um corpo escultural. Não admiraria se algum dia eu a visse desfilando a frente de uma escola de samba. O cabelo era cacheado. Lábios luxuriantes. Mas a melhor parte ficou para o final. Quando passou por mim, uma longa perna e nádegas estavam à mostra. Foi à visão mais maravilhosa que eu tinha visto.

            — Se sair vivo dessa, vou investir em tráfico de mulher — disse Noronha.

            A mulata deu-lhe um tabefe que ecoou por vários segundos antes de ser abafado pelos gritos dos expectadores.

            — Essa foi a nossa competente crupiê Isabel — ironizou Belo.

            De modo insinuante, começou a distribuir as cartas. O decote apertado fazia seus seios dançarem dentro do terno decotado.

            — Os jogadores não precisam se preocupar com a contagem. Nós temos bons contadores aqui. Eles fazem a contabilidade das maiores organizações criminosas de todo o mundo. Que comece o Rei de Copas — disse Belo.

            Olhei devagar para minhas cartas tentando não denunciar nenhuma emoção. A carta da Dama de Espadas veio para a minha mão. Me veio uma terrível dúvida se tê-la em minha mão a tornava benéfica ou se me prejudicaria. Ferraz me cutucou.

            — Estamos esperando o senhor jogar, ou tem alguma coisa melhor para fazer?

            As cartas que vieram para a minha mão foram mais de Paus. Ricardo iniciou com o Dois de Paus. Ferraz jogou logo em seguida. Dei a Noronha a Dama de Espadas e mais duas cartas de alto valor de Copas. Noronha jogou uma carta de Copas. Achei estranho, já que geralmente as pessoas não se desfazem logo das cartas de Copas, pois no final elas viram pontos. Ele ganhou a mão facilmente.

            — Mas como tu é burro peixe, me fez acertar a Lua! — aludiu Noronha.

            Agora havia me lembrado que quando você pega numa única mão todas as cartas de Copas e a Dama de Espadas, você não recebe pontos e no fim da rodada, todos os outros ganham 26 pontos automaticamente.

            A sorte, a matemática e as armas estavam contra mim. Ponderei levantar da mesa e morrer sem suspense algum. Mas isso fazia parte do jogo também. Utilizavam o instinto de sobrevivência contra a pessoa. A rodada terminou com todos marcando 26 pontos. Ferraz estava sorridente. Ricardo balançava a cabeça loira. Mordia os lábios finos e cheios de supuras. Devia estar numa fissura muito grande.

            Antes das cartas serem embaralhadas, Isabel retirou a parte de cima do terno. Ficando apenas com o sutiã, com taças pequenas demais para conter os seus seios túmidos.

Cartas mais uma vez atravessaram a mesa. Nessa mão havia pegado a quantidade certa. O jogo agora era fazer uma partida de recuperação. Tentei me livrar de todas as cartas de Copas dessa vez, acreditando que um raio não pode cair no mesmo lugar duas vezes. As leis da probabilidade parecem funcionar melhor quando estou sob pressão. Nessa mão consegui me desfazer das cartas de Copas, uma só retornou a minha mão.

            Com algum esforço consegui manter a concentração. Os meus adversários berravam em meus ouvidos. “Jogue logo”, dizia um, “Bata as cartas na mesa!”, outro ordenava. Faziam de tudo para me desestabilizar. O esforço deles foi em vão e acabei vencendo a mão fazendo só um ponto. Ricardo enlouqueceu, levantou da mesa derrubando tudo e apontando o dedo médio para o camarote.

            — Vão se fuder porra!

            Uma saraivada crivou todo o seu corpo que balançou a cada bala recebida. Quando Ricardo aparentava mais uma peneira do que um ser humano, pararam. O defunto caiu inerte. Um grupo de seguranças levou o corpo e outro de contrarregras arrumou tudo de volta. Isabel, para desviar a atenção da plateia, simulou um strip-tease que durou muito pouco, só tirou um sapato.

            — Aqui as coisas se complicam um pouco — disse o apresentador com expressão séria. Voltamos a sentar-se à mesa com um participante a menos. — Quando um dos jogadores morre, o técnico toma o seu lugar na mesa.

            O técnico de Ricardo foi arrastado, levando coronhadas de pistola no caminho. Até que sentou. Mil e uma hipóteses se passaram pela minha cabeça. Podia jogar a toalha e dá uma de kamikaze. Desistir depois de ver a quantidade de sangue no piso.

            Trezes cartas em minha mão. Números, naipes, peitos... Tudo girando na minha cabeça como um carrossel de loucura. Na quarta mão eu perdi a contagem de pontos. Só me importava em jogar. Durante o jogo, Ferraz continuou com sua rispidez. Provavelmente, nas ruas não passava de um leão de chácara. Noronha manteve a postura inconveniente. Poderia ser só seu desespero. Mas no fundo, não passava de um arquétipo de narcisista. Antes de morrer, queria ver aquele sorriso apagando. O novo jogador ora rezava uma Ave Maria, ora rogava aos santos que lhe ajudasse, nenhum deles escutou.

            Isabel retirou sua última peça de roupa, ficando só de cartola e calcinha. Foi difícil manter os olhos na mesa. Com uma calcinha bem pequena e transparente, desfilou com sua sensualidade por volta da mesa antes de distribuir as cartas.

            — Não é que eu queira meter lenha na fogueira — disse Bill dando de ombros —, mas essa é a última rodada.

            O maior teste para cardíaco. Por sorte, tinha uma saúde de ferro. Joguei com pelo menos três cartas de Copas na mão. A não ser que fosse o homem mais azarado do mundo, morreria ali, sendo assistido, mas sem ninguém que se importasse com a minha morte. Terminei a mão. Estava tão nervoso que tive uma crise de risos. Meus olhos derramavam um rio de lágrimas.

            — E aqui vamos ao resultado, os jogadores que fizeram 100 pontos primeiro foram estes. — Apontou para o telão. Não consegui olhar para o monitor. Foram tantos disparos que meus ouvidos ficaram surdos por um tempo. — O Rei de Copas é o...

            Sangue e cartas voavam na altura do meu rosto. Isabel veio até mim gingando suas curvas. Colocou as mãos em meu rosto e me deu um beijo. Depois disso apaguei. Acordei no sofá da sala na mesma posição em que me encontrava antes de ser levado para aquilo que permanecia como um sonho. Acordei com pernas trêmulas, bamboleando o corpo para lá e para cá. Cheguei ao banheiro. Passei a mão no vidro embaçado e abri a torneira da pia. O susto foi grande, em minha cabeça estava uma cartola.






Conto escrito por
Caliel Alves

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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Proibida a cópia ou a reprodução



Sinopse: Um policial do interior do Brasil está passando por uma fase muito difícil na sua vida, inclusive no trabalho, em uma delegacia de homicídios, e vai tentar, da melhor maneira possível para ele, colocar tudo em ordem, resolvendo as coisas uma a uma. A narrativa está na primeira pessoa, no caso, o investigador da polícia.


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