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Flor-de-Cera: Capítulo 10

Novela de Carlos Mota
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FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 10


– Por favor, não me mate! Por favor! – implora, Joaquim, com a mente elevada às orações ensinadas pela mãe.
– Ernestina?! – pergunta o médico, ao entrar em sua casa. – O que faz aqui a essa hora? Aconteceu alguma coisa com Catharine?
– Precisava falar com o senhor, o assunto é de seu interesse.
Entrega-lhe o envelope.
– Que brincadeira é essa, Ernestina? – assombra-se ao rever a letra de Franceline. – Não estou entendendo nada! Essa letra é de... de..., mas... mas...COMO?
– Abra-o e entenderá! – determina, não contendo a ansiedade.


Franceline repele o médico com veemência.
– Eu não te amo mais, Rubens! Deixe-me em paz, por favor! – implora.
– Não pode ser, não era isso o que me dizia há algumas semanas...
Como pode alguém deixar de amar outra em tão pouco tempo? Há algum problema em que possa ajudá-la? Confie em mim, AMOR!
– Acabou Rubens! Acabou! Assim como a vida, o amor também se esvai! Sinto muito, você é um homem maravilhoso, um príncipe encantado das fábulas infantis...
– Então, por que me deixas? – pergunta, aflito.
– O amor acabou! Entenda! EU NÃO TE AMO MAIS! – os olhos dela desmentem suas palavras.
– Não pode ser, você ainda treme quando me achego, como da primeira vez; se algo findara aqui, não fora o amor, querida! Ouça, meu coração bate descompassado, pedindo o seu.
– O amor só existe quando dois corações batem no mesmo ritmo! E o nosso, infelizmente, não entoa mais a mesma canção. Desculpe-me, Rubens! Foi lindo enquanto durou! Mas...
– Não pode falar isso para mim, temos uma história juntos... – pega-a pelos ombros. – Como apagá-la em um passe de mágica, Franceline? Eu não sou um lixo para ser tratado dessa forma, exijo ao menos uma explicação. O que acontece? Por que foges de mim? É dinheiro? Precisa de dinheiro? Se for, fale, dar-lhe-ei o quanto necessitar... Fale!
– Solte-me! – pede, com os olhos anuviados. – Solte-me! Vamos abreviar o sofrimento...
– VOCÊ AINDA ME AMA, NÃO AMA? FALE!
– Por que insistir em perguntas cujas respostas são ainda mais dolorosas? Entenda, “o amor e a razão são dois viajantes, que nunca vivem juntos na mesma hospedaria: quando um chega, parte o outro”.
– Refugia-se nas palavras de Walter Scott¹ – diz, limpando as lágrimas. – Seja você mesma, diga suas próprias poesias, recite-me toda a sua dor; só não me faça perder a esperança de que lá fora não há um lugar para nós dois. Sei que há, deixe Dilermando e venha viver comigo! Iremos para a França, para a Inglaterra, para onde quiser, só não consigo pensar em ficar sem você! Fale, tudo isso é MENTIRA, não é?
Uma lágrima desce o rosto da mulher.
– FAAAAAAAAAAAAAAALEEEEEEEEE!!!! – sacode-a, em prantos.
Ao soltar-se das mãos dele, pega a bolsa, uma Prada cinza que ornamenta o blazer branco e a calça preta, abre a porta do quarto, olha-o outra vez, abaixa a cabeça e parte, para nunca mais voltar. À distância, ouve-o gritar seu nome. Rubens está enlouquecido, a mulher que ama lhe virou as costas, como se o amor de ambos já não mais representasse a divindade. Nas escadarias, ela chora, está arrependida, mas não há o que fazer, se o caso permanecesse, uma enchente de sangue correria as ruas de Vila dos Princípios. E evitá-la era seu objetivo, ainda que lhe custasse a alegria de toda uma vida.
– DINHEIRO! – confidencia-se, já na calçada, contendo o choro. – Se esse fosse o problema, estaria resolvido há muito; o que está em xeque agora é a vida de minha menina... Desculpe-me, Rubens, amor de minha vida! Desculpe-me, mas não nasci para ser feliz, viver nos braços de um homem de alma tão dócil como a sua; minha sina é a dor eterna! E que dor... explode o coração!
– Como fui tolo! Então era isso?! – pergunta-se o médico, deixando de lado as memórias amargas.
No silêncio do escritório, lê a carta escrita pela mulher, não se atentando à documentação anexa.
– Como pôde me esconder isso por tanto tempo? Como? Enche o copo até a boca com vodca, nele mergulha duas pedras de gelo, e a bebe com gosto. Caminha até a escrivaninha, abre a gaveta e resgata a fotografia de outrora.
– ...O que importa é que estamos juntos... E para SEMPRE! – entrega-se de novo às recordações.
– Não existe o SEMPRE! – sentencia a dama dos Dumont. – Vivemos o presente enquanto o destino prepara o futuro.
– Por que toda essa descrença...? – incomoda-se o médico. – Quer me deixar?
– Não é isso, meu querido – rouba-lhe um beijo. – Estou cansada de esperar... esperar... e nada! Talvez o Céu esteja magoado comigo – sorri. – Devo não ser uma boa menina!
– Boa menina? – diz, resgatando-se. – Você nunca me amou e, se amou, foi um amor de primavera, daqueles que vêm e vão sem deixar vestígio. Egoísta! Por que guardou isso por tanto tempo? – engole outro copo de vodca. – Seria por medo? Não acredito! Uma mulher que diz ao esposo que precisa ir ao litoral rever uma amiga à beira da morte, e se tranca no quarto de hotel com o amante, não pode se dar ao luxo de sentir MEDO. MEDROSA... Esse adjetivo lhe parece sutil demais! DEMAIS!!!! – esmurra a mesa. – DEMAIS!!!!!!!!
Toma mais um copo de vodca, dessa vez sem gelo. Vendo-a no retrato, o sorriso se alterna entre a comoção e o desatino. Como aquela mulher conseguira lhe enganar por tanto tempo, e o pior, fazendo-o feliz como ninguém mais? Ela poderia atrair desgraças, mas que o havia feito feliz por longos meses, ah, disso não duvidava. Quanta felicidade ao beijá-la por todo o corpo, sentá-la sobre suas pernas, tocá-la n’alma...
Nada parecia mais aprazível do que aqueles sentimentos, todos brotados de um mesmo coração, hoje em ruínas. Perde-se em delírios... A dor é sagaz; a alegria atroz. Que disparate! De volta ao juízo, lança o copo contra a parede e destrói tudo o que há pela frente. O ódio oscula-o o âmago, despertando um ser vingativo, manipulado pela ira.
– Doutor Rubens! Doutor Rubens... senhor! O que está havendo? – grita Maria, batendo na porta. – Doutor Rubens!
– Vá embora... vá embora...me deixe, me deixe! – ordena, aos soluços, recolhido ao chão, com o corpo embriagado pela bebida e pela decepção; a mulher que esculpira com a avidez de seus desejos jamais existira, era produto de uma fantasia quase letal.
– Senhor, abra a porta! Senhor... – tenta, em vão, persuadi-lo.
– Catharine então é minha... minha...minha FILHA?! Por que não me disse antes? – quebra o retrato, pega a imagem e a observa com pesar. – Fez-me viver sozinho por quanto tempo?
– Doutor, abra a porta! – insiste a criada. – Abra!
– Fui abandonado quando mais a amava. Sabe o que é se sentir só, vazio, uma alma perdida? Pois assim me senti! Por mais que quisesse, nunca encontrei alguém que a substituísse, Franceline, porque meu amor, ao contrário do seu, não era aventureiro. Era e permanece tão puro como antes! Por mais longe que fosse, meu coração não deixava de apontar para essas terras, como se algo me atraísse. Mas o que seria? Você estava morta, por que então retornar? Eu não sabia, mas sempre acabava voltando – sorve mais da metade da garrafa. – Mas agora eu entendo...
Maria bate à porta uma última vez, depois se afasta devagar e volta para o quartinho, nos fundos da residência.
– O que aconteceu com esse homem? Ele é tão equilibrado!
– Cristo! Tenho uma filha! Por isso a bússola de meu coração acabava sempre me trazendo para esse lugar. Aqui estava minha FILHA, nossa FILHA, Fran...
– Eu vou sará, doutor Rubi? – ele é novamente surpreendido pelo passado. – Eu vô? – pergunta Alana, com os cabelos ralos e o corpo bastante fragilizado.
– Claro, minha menina! Claro! É só pedir ao papai do céu, ele atenderá a tudo o que um anjinho como você pedir.
– Mas eu tô fraquinha, não quero nem comê mais. Sabe o que eu queria? Era tá na escola com minhas amiguinhas... O senhô pode me levá lá? Quero vê a tia da minha escola, abraçá ela – arfa –, abraçá as minhas amiguinhas. Por favô, doutor Rubi! Minha mãe disse que assim que eu melhorá, ela vai me levá lá... Acho que papai do Céu não tá me vendo.
– Não diga isso, querida! – limpa uma lágrima que lhe cai à face.
– Papai do céu só está um pouco ocupado, mas tenha certeza, ele está ouvindo tudo o que diz. Tudo mesmo! E assim que melhorar, eu mesmo a levarei à escola; em breve estará na companhia dos amiguinhos de novo.
– O senhô vê ele? – cospe sangue. – O senhô vê ele?
– Ele quem, Alana? – assusta-se com a perspicácia da menina.
– Papai do Céu!
– Papai do Céu? Ah, ninguém pode vê-lo, apenas senti-lo.
– E como sabe que ele existe? – tosse de novo.
O médico lhe acode, limpando as vestes com desvelo. Junta suas mãos às dela com delicadeza e as leva a seu coraçãozinho.
– Sente? Veja, o coração está batendo... Toc-Toc-Toc... Você não o vê, mas ele está aí, dentro de você, e bate feliz; com o papai do Céu a mesma coisa, ele está aqui, nos ouve, nos toca, nos vê rir ou chorar, às vezes nos abraça, nos pega no colo, e como sabemos disso? Porque assim como o coração, não o vemos, mas o sentimos!
– Gosto muito do senhô, doutor Rubi, podia sê meu vô, né?
As palavras da menina o enternecem. Após um pequeno sorriso, ela cerra os olhos e adormece.
– Como ela está doutor? – indaga uma enfermeira ao vê-lo acariciando-a.
– Pronta para partir!
– Não há mais nada a fazer?
Ele abaixa a cabeça e o choro é sua única resposta.
– Cuidei de Alana sem saber que era minha neta – diz, libertando-se. – Ela morreu em meus braços! Minha neta! – rasga o retrato com ódio. – E como chorei a perda dela... Se eu pudesse voltar no tempo, Ó Franceline, nada seria como foi... Nada!
Uma brisa inebriante desce do céu, bate à janela e entra pelas brechas, indo ao seu encontro. Ao percebê-la, ele emudece e, como que possuído por uma força estranha, fecha os olhos e suspira, suspira, suspira tão profundamente a ponto de perder a noção da realidade! Uma mão – esta é a sensação – o acaricia a face, enquanto os lábios sentem outra vez a essência daquela que ousara desbravar seu mundo interior.
– FRANCELINE... É VOCÊ, MEU AMOR?! POR QUE FEZ TUDO ISSO COMIGO? QUE MAL LHE FIZ? – sussurra, em meio à crise.
A aragem cessa de repente, desesperando-o. Apoia-se à estante, quer se levantar, mas uma das pernas do móvel se rompe, jogando-o de novo ao chão.
– Senhor Rubens, o que há?! Fale! – grita Maria, apavorada com o barulho.
– Eu nunca usei uma arma, Catharine! – diz George, no hospital. – Nem porte eu possuo! Por que me atreveria a matar um... um MATUTO tão insignificante como aquele? Ainda se tal atitude me rendesse algo além do xilindró!
– Então, por que Moacir inventaria uma história dessas? Ele é... é...
– ...xucro! – completa. – Isso mesmo, é um coitado, sem eira nem beira, daqueles que se morresse agora, ninguém perceberia. Talvez esse seja o motivo para despertar histórias infundadas: defender outro de sua espécie! Ou o motoristazinho não é tão insignificante quanto ele?
– Moacir é ingênuo demais para ter toda essa imaginação.
– Na certa, quis inquietá-la e lucrar algum. Coisa de pobre mesmo!
– Lucrar algum? – impressiona-se com a desfaçatez do marido. – Como assim? Quem pagaria por uma maldade dessas?
– Talvez a oposição, que deseja a qualquer custo me derrubar, porque ela sabe, meu nome está diretamente associado à conquista do Posto de Saúde e, quando ele estiver pronto, figurarei na liderança da campanha para o cargo de prefeito de Vila dos Princípios. É questão de tempo! Então, o que lhe sobra? Instigar arruaças, despertar mentiras como a que contou, numa dessas, quem sabe não me acerta?
Catharine fixa-o repleta de dúvidas.
– Como és Ingênua! Quem vê cara não vê coração. Moacir é franzino, tem uma família enorme, uma esposa adoentada, e que eu saiba, presa a uma cadeira de rodas... O que ele tem a perder? Nada! Já nós... Se um comentário desses cair nas mãos da mídia, será o fim de nossa família, ou se esqueceu de que estamos sob a ditadura da imprensa marrom², aquela que primeiro bate para só depois perguntar?
George aproveita-se do silêncio da mulher para reforçar suas hipóteses.
– Catharine, atente-se ao que realmente merece nossa atenção: Joaquim é um homicida e deve pagar caro pelo que fez!
– Convivo há meses com aquele homem e sei o quanto é puro; não me parece capaz de tal crueldade – diz, ainda não convencida.
– Você fala dele como se o conhecesse além da profissão – dispara o vereador, observando atentamente a reação dela.
– EU? CLARO QUE NÃO! – disfarça.
– A impressão que tenho é a de que me esconde alguma coisa, mas o que seria? Causa-me estranheza o fato de que, mesmo diante de todas as evidências, permaneça do lado daquele criado! Seja sincera, Catharine, tem algo a me dizer?
– E-e-eu? – estremece. – NÃO!
– Talvez...vejamos... uma TRAIÇÃO?
– NUNCA! – arrepia-se. – De onde tirou essa ideia?
– Não sei, alguma coisa me diz que você está muito preocupada com Joaquim, aliás, mais preocupada com ele do que comigo, o seu esposo.
– Um dia entenderá o que é o amor de verdade; quando isso ocorrer, o que lhe virá à mente, de súbito e sem qualquer receio, será esse tapa, que levarei comigo para o túmulo. Tens o meu perdão; não minha compreensão! Espero que o seu desejo nunca fuja do ninho do casamento; porque se fugir como o meu, sentirá na pele o que eu sinto e se verá no espelho como uma TRAIDORA, não como uma mulher que ousou se libertar de uma jaula para viver o mais nobre dos sentimentos... – As palavras de Franceline lhe explodem à mente, desnorteando-a. – Eu nunca o traí, George. NUNCA!
– Será, querida mulher, herdeira única de todo o patrimônio dos Dumont? – especula, com os olhos flamejando, ao perceber a insegurança dela. – Sabe, a traição é genética, está no sangue e não há como não aceitá-la. Talvez eu seja a imagem atual de Dilermando, e você, o rascunho de Franceline – debocha. – Coitado, quando ele soube dos segredos de alcova de sua mãe, não suportou a vergonha, caiu duro, levando consigo, para o túmulo, o nome do rival. Talvez o destino me reserve epílogo semelhante.
– PARE, GEORGE, EU NUNCA FIZ NADA! NUNCA!
– TEM CERTEZA? – insiste, com fervor. – NUNCA ME TRAIU? FALE, FILHA DE FRANCELINE, OU MELHOR, FILHA DE UMA TRAIDORA!
– PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAARE, por favor! – fecha os ouvidos, enquanto os beijos dados no criado lhe são arremessados à razão.
– Imagine Alana, nossa filhinha, chorando lá no céu, ao saber que sua mãe se deitou com um homem que não foi seu pai... Tadinha! Faltariam anjinhos para consolá-la – desdenha com gosto.
– Eu... – chora.
– VOCÊ ME TRAIU, NÃO É? – os berros do vereador invadem os corredores, atraindo a atenção dos outros pacientes. – E logo naquele cemitério, em frente ao túmulo de Alana. Eu sei de TUDO! O vigia de lá me contou em detalhes...
– Que vigia? – ela o interrompe, dissimulando. – Do que está falando?
– Do vigia que trabalha no cemitério, um pobre que me deve favores, ou vocês pensavam que estavam apenas na companhia das almas penadas? Ele me ligou, detalhou fato por fato, dizendo que até parecia coisa de cinema: os pombinhos abraçados em meio à chuva, aos beijos... Que lindo! Hum! VAGABUNDA, TRAIDORA!
Abismada com a revelação, ela se retrai.
– Está acontecendo alguma coisa, vereador? – pergunta uma enfermeira, entrando no quarto.
– Não, minha querida, estava apenas despedindo-me de minha esposa. Agora, por gentileza, conduza-a até a saída, pois estou exausto!
Retirada do quarto, Catharine desaba em uma das poltronas do corredor.
– INFELIZ! – ri o vereador. – Está tão perdida que chega a ser digna de dó! Mas isso logo terminará, a partida está no meio, em breve, toda a fortuna dela será minha. SOMENTE MINHA!
Cobre-se e dorme o sono dos príncipes que nunca deixaram de ser sapos.
– Me-me-meu Deus, ele sa-sabe de tudo! Sou uma TRAIDORA! Não, isso não! Onde estará Ernestina? Preciso dela, de seus ombros...
Com o celular em mãos, liga para a mansão. Ninguém atende.
Levanta-se com dificuldade e se dirige ao carro; acometida por uma vertigem, ela cai à calçada. Moacir a socorre.
– A sinhora percisa di ajuda, dona Catharini. Vamu vortá pra dentru do hospitar.
– Não! Não! Não, Moacir! Para o hospital não, preciso do auxílio do doutor Rubens.
O médico vê o nome de Catharine no visor do celular e não tem coragem de atendê-la.
– Onde está? Atenda, Rubens! Atenda! Atenda, meu bom amigo!
– Venha, vô ajudá a sinhora até u carru.
– O que tem, dona Catharine Dumont? Está traumatizada com os últimos acontecimentos? – pergunta um dos jornalistas. – Por que o motorista atirou em seu esposo? Que mistério sustenta toda essa desgraça? Responda!
– Sai pra lá, ocêis é tudo um bandu di urubu, quanto mais carniça, mió! Num respeita a dor dus outro! – revolta-se, ameaçando-os com os punhos cerrados.
A porta da mansão se abre. Ernestina entra. Desolada, carrega sobre os ombros todos os pecados do mundo. Os olhos da cor do sangue confirmam, ela havia chorado o caminho todo. A caixa de pandora, aberta como está, destruirá toda a família Dumont. Mas fazer o quê?
Era o desejo de dona Franceline, a quem jurou fidelidade. Aliás, que mistérios ela guarda? Não sabe, mas imagina! E pela reação de Rubens ao ler as primeiras linhas da amante, coisas boas não eram mesmo!
Outro prato despenca da cristaleira, para o espanto da criada, que grita:
– AVE! MAIS UM? SANTO DEUS, SÓ PODE SER NOTÍC...
O telefone toca antes dela concluir o pensamento.
– Quem é? – geme de medo. – O QUE ESTÁ ME DIZENDO? QUANDO FOI ISSO? MEU DEUS, COITADO DO JOAQUIM!
– O que aconteceu com o Joaquim? – indaga Catharine, achegando-se, ao ouvir parte da conversa.
– UMA COISA HORRÍVEL, SENHORA... – não há forças para exprimir a dor que lhe devora a alma.
O sol, um imenso disco amarelo-limão, procura espaço entre as nuvens cor-de-rosa, para beijar, com seus raios, a terra encharcada de Vila dos Princípios. O seu contraste de cores atrai a atenção dos moradores, causando emoção nos mais humildes e profunda admiração, se não inspiração, nos mais abastados. Há quem se arrisque a dizer que todo aquele colorido, mesclado e disposto em filetes no céu verde-amarelo, lembrava “O Semeador”, a tela do genial Vincent van Gogh³.
Pelas frestas da janela, dois idosos, ainda de pijamas, apreciam com desvelo os montes virgens e repletos do mais profundo verdor, que circundam a cidade. O dia está nascendo, traz vida aos desesperançados, amor aos desgraçados, luz aos condenados.
Da sacada da prefeitura, Adelaide assiste àquela beleza com demasiada alegria. Há quase uma semana o sol não lhes dava o ar de sua graça; nada mais justo do que recebê-lo como se recebe um ente querido.
– O que faz em minha sala? – pergunta o prefeito, ao abrir a porta do gabinete.
– Oh, prefeito, estava apenas admirando o dia. Viu como está lindo?
– E desde quando a senhora é paga para “admirar o dia”? Faça-me o favor, dona Adelaide, pique a mula daqui – está de mau humor.
– Espere, cadê o meu saquê? Tô com a goela seca, seca.
– Vai beber a essa hora? – espanta-se.
– Era só o que me faltava, uma empregadazinha me controlar. Hum! Ainda mando a senhora embora, nem que seja o último ato administrativo de meu mandato!
– Prefeito, não quis ofendê-lo! Apenas...
– Pare de rodeios, estou com a goela seca, seca! Até parece que estou num deserto.
– Não prefere um café, um chá, talvez um cappuccino? Preocupo-me com sua saúde, porque quem bebe aos goles como o senhor, tem grandes possibilidades de contrair uma cirrose.
– E desde quando a senhora é formada em medicina? Vá logo fazer o que lhe mandei! Cirrose... Cirrose tem é sua mãe, sua intrometida! Dê-me logo o saquê! Vá! Isso é uma ordem – senta-se à cadeira giratória e dá três tapinhas na mesa. – Vá! Vá!
– Senhor... – chama a assessora.
– Trouxe meu saquê? – inquire, de costas, apreciando o movimento do comércio pela janela.
– Está aqui! – entrega-lhe a bebida. – Mas não é sobre isso que quero lhe falar... Aquele homem está aí de novo!
– Que homem? – vira o copo com gosto, estalando os dedos. – Arre égua, como é bom esse trem! Pois fale, que homem é esse?
– Aquele com nome de planta.
– Planta?! Hum! Ah, deve ser o doutor Paineiras Ken. Verdade, ele tem nome de planta! – gargalha. – Deve ter sido concebido num matagal. Há muitos por essas bandas...
– Prefeito, que feio! – repreende-o, envergonhada.
– Feio é filho de rato que nasce pelado no meio do mato.
– Mas ele pode ouvir.
– E daí? Que ouça! Quem manda nessa cidade sou eu, portanto, falo o quiser; aliás, aproveitando, o que a senhora fez no cabelo?
– O senhor gostou?– anima-se. – Fiz uma escova.
– Ficou parecendo um tamanduá de bigode! – escracha. – Não tem vergonha de sair à rua com esse topete? Se eu fosse a senhora – Deus me livre guarde, dava uma boa rastelada nessa juba. De espantalho, já basta minha sogra... Ave! A bicha é feia pra burro – gargalha. – Hum! Mas deixemos de história, peça ao doutor Planta, quer dizer, Paineiras, entrar.
Após cumprimentá-lo, Tanaka encosta a porta.
– Deu certo o plano B? O motorista já bateu com as botas?

Encerra com a música (Fall On Me - Andrea Bocelli, Matteo Bocelli).
_____________________
1. Romancista e poeta escocês. É considerado o criador do romance histórico, cujo enredo se baseia na pesquisa e na reconstrução de dados e fatos reais do passado.
2. Imprensa marrom é a forma como podem ser chamados órgãos de imprensa considerados publicamente como sensacionalistas e que busquem alta audiência e vendagem através da divulgação exagerada de fatos e acontecimentos. É o equivalente brasileiro e português do termo yellow journalism.
3. Um dos maiores mestres da história da arte de todos os tempos, o holandês Vincent Willem van Gogh estabeleceu as bases da pintura do século XX. Mais ousado do que os impressionistas, chegou a expressar seus sentimentos por meio de uma representação totalmente subjetiva da realidade. De difícil classificação, cronologicamente sua obra pode ser considerada pós-impressionista.


REALIZAÇÃO




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