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Cine Virtual: Uma Lição na Tempestade

Conto de Mercia Viana
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Sinopse: Pedro fez uma escolha que o levou a um cenário de vida do qual não esperava. Ele poderia dar um passo atrás e recuperar o que perdeu, poderia voltar ao início e tentar de novo, de uma outra forma, mas o seu orgulho não deixa. Até que, diante de uma tempestade, Pedro se depara com algo que o faz refletir sobre sua própria vida, algo que pode levá-lo a enxergar o que é mais importante e a abandonar o orgulho.

Uma Lição na Tempestade
de Mercia Viana

            Os momentos mais especiais da vida de uma pessoa geralmente são marcados por sorrisos e um belo dia de sol ou por uma leve brisa e céu estrelado; talvez por um calmo dia de chuva com uma boa companhia e algum detalhe que torne a ocasião memorável. Mas eu, Pedro, guardo comigo um momento especial que ocorreu em meio a uma tempestade e trouxe luz para os meus dias. 

***

            No mercado, me atentei às diversas variedades de alimentos nas prateleiras, mas olhando as poucas moedas que eu tinha no bolso, não foi difícil decidir: miojo mais uma vez. Saindo, senti os primeiros pingos de chuva tocando levemente meu rosto. 

           — Droga! Esqueci o guarda-chuva — Tinha visto, no jornal das 6h, previsão para pancadas fortes de chuva no fim da tarde. Eu devia estar preparado. 

            — DLOGA! — repetiu uma menina bem pequena, de pele clara, cabelos lisos e castanhos; enquanto do seu lado, uma mulher, que suponho ser a mãe, procurava algo em sua enorme bolsa. 

            — Júlia! — a mãe disse em um tom firme e repreendedor, com um olhar de reprovação. Em seguida, lançou mão de seu guarda-chuva, arrastando a menina em direção a um carro que estava a alguns passos da entrada do supermercado.  

            Um Fiat branco passou por mim; da janela, vi a menina, que repetiu: 

            — DLOGA! — Nesse momento, a chuva aumentava.

           Eu não tinha um guarda-chuva e muito menos um carro, então o jeito era ficar ali, imóvel, observando o Fiat sumir em meio ao trânsito enquanto pessoas saiam do supermercado: algumas com sacolas em uma mão e o guarda-chuva na outra; outras passavam apressadamente as compras que estavam no carrinho do supermercado para o porta-malas de um carro; e havia alguns como eu, que desprevenidos, tinham que aguardar. A chuva diminuiu após meia hora, agora com respingos quase invisíveis. Então, iniciei minha caminhada de uma hora até minha casa. No caminho, fui refletindo a mesma coisa de todas as outras vezes em que eu estava sozinho:  

            “Há seis meses, eu tinha meu próprio carro, mas agora não tenho dinheiro nem mesmo para pagar um UBER. Onde foi que eu errei?” 

            Já anoitecia. À medida que eu avançava, a chuva aumentava novamente. Apressei os passos, sentindo as rajadas de vento gelado batendo de forma agressiva no meu rosto. 

           A mais ou menos vinte minutos de minha casa, de frente a um beco escuro, um vira-latas magro, de pelo preto e pernas compridas latia como se quisesse chamar a minha atenção, dando giros inquietos. Eu já havia passado por ele, mas voltei tirando de minha bolsa encharcada um pote onde tinha um pão doce e alguns biscoitos que eu levara para o trabalho. Supondo que ele estava com fome, joguei o pão próximo a ele. Eu teria me virado para seguir meu caminho, mas o cachorro só me encarava, latindo e fazendo barulhos semelhantes a gemidos. 

            — Não está com fome é? Ah não, não me olhe desse jeito! Não posso te levar pra casa.

 

            O cachorro começou a entrar e sair do beco escuro com a mesma inquietude que girava. 

            — Ah, qual é doguinho? 

            Estava muito frio. Eu, todo encharcado, só queria chegar logo em casa, tomar um banho e vestir uma roupa seca, mas logo que me virei para ir, ouvi uma tosse que parecia vir do beco. Não pensei em nada; apenas segui o cachorro. O beco era curto; seu propósito ali, provavelmente, era ligar uma rua à outra e servir de atalho. 

            — Meu Deus! — eu disse quando avistei, no chão, um borrão preto e constatei que era uma pessoa.

            — Você... hã ... o senhor... — Chegando bem perto, ainda que não pudesse ver o rosto com clareza, notei que era um homem velho. Eu já ia perguntar se estava bem, mas era óbvio que ele não estava. 

            — Meu Deus! O senhor está congelando! Vou chamar uma ambulância... isso...o senhor precisa de um médico — eu disse enquanto colocava meu casaco sobre seu corpo magro e trêmulo, tentando, inutilmente, protegê-lo do frio e da chuva. 

            — Não, por…favor. Me leve...pra casa. — disse com a voz rouca e fraca, intercalando tosses entre sua fala. 

            — Mas, senhor... 

            — Por favor... 

            — Está bem... Onde o senhor mora? 

            — Logo ali… na esquina.  

            O peguei no colo, indo até onde ele me instruiu. O cachorro nos acompanhou. 

            A casa simples, com aparência antiga, destoa muito dos prédios, sobrados, e casas modernas sofisticadas daquela rua. A porta da casa estava entreaberta, o que me fez pensar que teria alguém em casa; eu iria perguntá-lo, mas logo notei que ele dormia como uma criança no meu colo.  Toquei a campainha, chamei várias vezes, e nada. Eu precisava aquecê-lo, e a chuva estava mais forte, com relâmpagos, trovões e muita ventania. Então entrei. 

            Liguei a luz e me deparei com um ambiente, que sinceramente, não parecia ter alguém morando nele. No primeiro cômodo da casa, havia uma cadeira velha de balanço, do lado, uma mesinha com apenas um rádio antigo. Havia teias de aranha no teto e várias caixas de papelão no canto da parede, empoeiradas de uma forma que pareciam estar ali há anos sem nunca terem sido tiradas do lugar. Fechei a porta da entrada, e com o senhor no colo, avancei pela casa à procura de uma cama para deitá-lo.  

            O quarto era tão minimalista quanto a sala. Havia apenas uma cama, uma mesinha e um cabideiro com cinco pares de roupa e mais dois casacos. De frente da cama, havia um par de sapatos. No canto, mais caixas. E não pude deixar de notar uma foto em preto e branco que estava por cima da mesinha: um casal e duas crianças. A foto tinha marcas de dedos como se fosse constantemente manuseada. 

            Eu tirei a roupa encharcada do senhor, substituindo por um par de moletom, e fui para a cozinha ver se tinha como preparar algo quente pra ele comer. Não encontrei nada. Em um cesto do lado da pia, onde parecia que o lixo não era tirado a dias, vi várias embalagens de marmitex; havia um fogão, também cheio de poeira, com sinais de que não era usado, então constatei que ele não cozinhava ali. Peguei o miojo que eu havia comprado no supermercado e uma panela. Preparei, e levei para ele: 

            — Acorde, fiz algo pro senhor comer. 

            Ele abriu os olhos lentamente e me encarou, parecendo confuso: 

            — Quem…quem é você? 

            — Pedro. O senhor estava caído debaixo de um chuvão, então eu trouxe o senhor pra casa.  Não se lembra?

             Ele me olhava, no que parecia uma tentativa de se recordar de algo. 

            — Obrigado. — Lançou um olhar puro de gratidão enquanto pronunciava essa palavra. 

            — Imagina, foi graças ao seu cachorro que me alertou. Mas ... como foi parar lá? 

            — Não me lembro. Acho que eu saí pra comprar remédios... não me lembro do que houve depois. — disse isso colocando a mão na testa, nitidamente confuso.

            Lá fora, o mundo parecia estar acabando, as condições do tempo pioraram, formando uma grande tempestade. Eu pensei nas minhas noites solitárias em casa; então, por um momento, gostei de estar ali com uma companhia, ainda que fosse de um desconhecido.  

            Aquela casa tinha algo semelhante com a minha: triste, vazia: não parecia um lar. Eu havia me mudado há seis meses, mas ainda não tinha colocado todas as coisas no lugar, simplesmente porque acho que preciso de mais tempo para me acostumar com minha nova vida. 

            — Ei, rapaz, sua família deve estar preocupada com você fora de casa… nesse temporal... Já ligou pra avisar que está bem? 

            — Ah... eu… é... também moro sozinho. 

            — Sabe, rapaz — ele deu uma pausa para tossir, como fazia desde que o encontrei — eu daria de tudo pra voltar no tempo e ter minha família… de volta. 

            — Mas o que houve? Onde está sua família? 

            — Eu a deixei… há muito tempo... — Ele pegou a foto, observando-a com um olhar melancólico ao mesmo tempo em que uma lágrima escorria pelo seu rosto. Senti um nó na garganta. 

Por reflexo, olhei para a janela de vidro, um galho enorme acabara de passar voando por ela. 

            — Mas se o senhor sente falta, pode procurá-los, não é? Nessa idade, precisa da família por perto.

            — Já passou tempo demais... tempo suficiente para se acostumarem com minha ausência e construírem suas próprias vidas... sem mim... não faz mais sentido eu procurá-los. 

            Quem sou eu pra dizer alguma coisa? Há seis meses eu saí de casa. Eu tinha estabilidade no meu casamento, a vida financeira também não ia mal, mas eu queria mais. A vida do interior não era pra mim, eu precisava de algo melhor. Foi então que recebi uma proposta de um bom emprego na capital, do qual eu começaria ganhando um valor que já era mais alto do que o da empresa onde eu trabalhava, e, depois de um tempo, eles aumentariam o salário; mas pra começar eu não poderia levar minha esposa e meus três filhos, pois os gastos seriam maiores para nós cinco. Foi então que fiz uma proposta pra minha esposa: eu viria pra capital e, depois que me estabilizasse, buscaria ela e meus filhos. Mas a Laura não concordou e disse que se eu viesse pra capital eu não precisava mais voltar. Sinceramente, não entendo por que ela fez isso, devia me apoiar. Então eu vim, mas ela não aceitou nem pensão para as crianças, disse que se virava sozinha. Eu prometi a mim mesmo que eu voltaria pra buscar ela e meus filhos; ela me aceitaria quando visse que eu estava certo, que tudo ocorreu como eu planejei, e, assim, eu poderia dar uma vida melhor a eles. Mas acontece que tive alguns problemas: houve uma pandemia nesse meio tempo; dessa forma, o setor de fabricação de veículos foi prejudicado, e muitos funcionários demitidos, inclusive eu, nos meus quatro meses de trabalho. Logo depois, consegui um emprego de porteiro, mas o salário mal paga meu aluguel. Parece simples, eu poderia voltar para minha cidade, mas não vou fazer isso... não posso voltar como um derrotado. 

            — Entendo — eu disse, quando na verdade, queria contar tudo isso pra ele, para que soubesse que eu realmente entendo. Mas não sou de me abrir para estranhos e não acho que ajudaria em alguma coisa. 

            A noite foi passando. A tempestade não cessava, e as horas que eu passava ao lado daquele senhor pareciam minutos. Desde que cheguei à capital, não tive ninguém pra conversar.  Ele dizia coisas das quais ouvimos apenas de quem tem muita bagagem, muita experiência de vida, coisas sábias; repetia várias vezes como a família é um bem precioso e como ele sentia falta da sua família. O ritmo da sua fala foi diminuindo, a voz estava saindo cada vez mais fraca. Achei que ele estivesse muito cansado e pensei em deixá-lo um pouco sozinho, mas ele pediu que eu ficasse quando sugeri isso, então assenti com a cabeça e permaneci ali.

 

            Depois de um tempo, ele começou a ficar com dificuldade para respirar. Ao tocar seu rosto, eu senti sua pele esfriando, cada vez mais. Fui tomado pelo desespero: “Droga! O que faço agora?”, pensei.

            — O senhor está pálido! Vou chamar uma ambulância, o senhor querendo ou não. 

            — Me deixe ir, rapaz. Já chegou minha hora. — Ele disse com um semblante leve, como se há muito tempo já aguardasse por aquele momento. 

            Eu segurei sua mão, e logo seus olhos perderam o brilho, então percebi que ele não estava mais ali. Fiquei muito assustado, não tinha o que fazer. Mas é isso? Terminaria assim? Ele não teria a chance de ver seus filhos crescidos? De dizer a sua esposa o quanto estava arrependido de ter ido embora? Seria ali seu fim? Em uma casa sem vida com um estranho do lado? Sim, foi esse o fim! Então, toda minha história passou pela minha cabeça, e a essa altura, o dia já estava amanhecendo. No momento em que abaixei as pálpebras dos olhos daquele senhor, a tempestade passou, e eu sabia exatamente o que eu devia fazer depois. Liguei para o hospital para informar que um senhor havia morrido, deixei-o ali e fui fazer minhas malas.

Conto escrito por
Mercia Viana

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima Eliane Rodrigues
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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