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Antologia O Mal que nos Habita: 1x08 - A Tela

Conto de Amanda Kraft
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Sinopse: Ela chega em seu apartamento cega de raiva. Uma tela vai ao cavalete num gesto automático. Enquanto o grafite macula o branco, ela despeja sua frustração, raiva e questionamentos, sem realmente enxergar o emaranhado de cores que se revelam. Em seus olhos há apenas a cena que presenciara naquela noite. A cena que virou seu mundo de cabeça para baixo. Seu  namorado na cama com outra. Em suas lembranças das últimas horas, a confissão de seus atos ficará evidenciada na tela. Aquele fora seu melhor trabalho, mesmo tendo que se confrontar com o terror para alcançá-lo.


A Tela
de Amanda Kraft

 

Bateu a porta com força. Não se lembrou de trancar a maldita. Sua mente estava focada naquilo que os olhos se negavam esquecer. Seu coração fora despedaçado. Pegou uma tela em branco e a colocou no cavalete. Ódio! Que cega e fere! Quase quebrou o grafite ao começar os primeiros riscos. Como pôde? Fez o primeiro contorno sem nem perceber. Seus pensamentos corriam soltos. Hipócrita!  Segundo contorno. Sua mente insistia em voltar à cena que pusera seu mundo de cabeça para baixo. Riscou a tela novamente sem enxergá-la. Via apenas o idiota na cama com outra. O próximo risco quase perfurou a pobre tela.

Por que sempre temos que acreditar que nosso mundo será melhor se houver alguém caminhando ao nosso lado? Por que não nos bastamos? Gritava a moça no silêncio da sala. Riscos cegos e febris. Tão negros quantos seus sentimentos. Para a direita, para a esquerda. Um passo atrás. Analisa a tela sem julgá-la. Quantas vezes dissemos que será a última vez? Quebrou o grafite enquanto sua boca proferia perguntas ao apartamento vazio que jamais teriam respostas.

Seu coração tremia. Nem se dera o trabalho de tentar negar o óbvio. Os riscos passaram a ser rápidos e furiosos. A loira, esparramada sobre seu corpo, era alguém que conhecera no bar que ele a levara. Burra! Deveria ter sacado logo de cara. Aquela troca de olhares, quando se sentaram à mesa do canto, sua preferida, não foi aleatória. Pegou um tubo de tinta a óleo azul e apertou no prato com violência. O desgraçado tinha uma boa lábia. Enrolou-a como se fosse uma adolescente deslumbrada com o primeiro elogio. Quando ela o interpelou o maldito apenas sorriu.

— É apenas uma amiga.

— Não me pareceu apenas uma amiga. — Encarou-o furiosa.

— Não vá estragar a noite, gatinha. Ou vai? — Perguntou-lhe com voz mansa, porém seu olhar estava duro.

— Não.

Seus lábios reproduziam a lembrança do diálogo eloquente que a feria. Uma pincelada dura, quase sem jeito, para a direita. Não houvera testemunha, apenas ela cumprindo o papel da boa namorada. Namorada? Que significado tal palavra teria para ele? Outra pincelada rígida levou o pincel ao chão. A marca de tinta não a incomodou. Apenas uma lembrança persistente de seu erro. Quem em sã consciência espera que um cara que te leva às nuvens, te faz ver estrelas ao dizer palavras doces, jurando amor eterno na fusão de corpos, vai logo sorrir para outra na sua frente como se você não existisse? Gritou para as paredes imaculadas onde seus quadros acusavam dias felizes.

Um tubo novo. Amarelo Cádmio. Fora tão gentil e encantador. Lindo! Como era lindo! Porém, perverso! Verde Folha. O tipo que coleciona mulheres. Por que não percebi logo de cara que um homem desses jamais se contenta com apenas uma? Que as usa como se fossem descartáveis. Idiota. Basta um sorriso e já me derreti. Burra! Insana! Cinza. Da cor da sua alma. Preto. Seus beijos intensos a fizera enlouquecer. Terebintina. O toque de suas mãos sedosas a fez suspirar e desejar muito mais. Pincel. Maldito! Tinha que ser tão desejável?

As lágrimas vieram anuviando os pensamentos e os olhos. A boca se calou. A tela se transformou num borrão. Entretanto sequer reparou. Estava apenas pondo para fora o ódio que se avolumara. Cuspia-o no emaranhado de cores e traços cegos. Precisava de uma bebida. A adrenalina estava alta. Correu à geladeira e pegou o vinho. Olhou o líquido escuro, pela metade na garrafa verde, por alguns segundos. Sua mente se perdeu mais uma vez. Bebeu do gargalo.

A porta da geladeira sofreu em suas mãos furiosas. Aquilo sempre se repetia. Uma lição esquecida do passado. Bastou apenas um segundo para revivê-la. Mergulhou no pranto em frente à tela úmida. Outro gole. Verde musgo, misturado ao verde folha, com um toque de laranja. Pincelada vigorosa para a esquerda.

Música. Precisava de algo alegre para afugentar o quadro que cravara na retina. Rebolou no samba do abandono, cantarolando a letra vazia.

— Quero te encontrar e encenar o que escrevi pra mim. E transformar meus sonhos em atos onde você tem o papel principal...

Sorriu com escárnio ao misturar o marrom com o rosa pink. Sombreou. Sua vida era uma sombra. Tantas promessas em vão. Tantas vezes fora ao chão se maldizendo, rezando aos anjos, pedindo, implorando. Por que essa necessidade de amor? Não poderia apenas se amar? Ser a mulher sobre o salto? Empoderada, independente? Tinha que ser carente? Azul turquesa. Não! Turquesa não. Azul lunar.  Pinceladas cruzadas. Um gole no gargalo, a dor no coração.

O samba crescera. Ela sorria no refrão, cantarolando para os rostos pendurados na parede que a fitavam sem vida. Deveria ter pintado natureza morta. Foda-se!

— Vem me dar calor, na esperança não há dor. Só a liberdade. Só a liberdade. Vem me dar calor. Me faz juras de amor...

Um soluço no meio do refrão quase a faz derrubar a garrafa. Uivou na noite, agachada em frente à tela. Os cabelos caíam soltos no rosto borrado. A garrafa, quase vazia jazia, entre as pernas, manchando o tapete. Ela não se importou. Nada mais importa. A marca da traição a fere. O ódio avolumou-se. Ergueu-se trôpega. Nem tanto. Outro gole, outra cor. Violeta. Apertou a bisnaga com força, respingando no vestido novo. Merda! Compraria outro.

Nova pincelada. Agora mais calma. A tela tomava forma, entretanto, a moça não tinha olhos para ela. Uma pincelada vigorosa e os corpos entrelaçados faziam sua mão tremer. O ódio a consumia. Os olhos dele se deliciando com a loira a enlouquecera. Não pôde se segurar. Prometera a ele que não estragaria a noite, entretanto ele não parou de engolir a vadia com os olhos. As pinceladas se tornaram vigorosas. O azul fundido ao preto deslizou na parte superior. Ela o deixou no restaurante. Mandou-o para o inferno que era seu lugar.

O ar frio da noite clareou seus sentimentos. Estava sendo uma tola infantil. Afinal era uma mulher. Não uma dessas menininhas tolas que acham que podem tudo por conta de um rostinho bonito. Recriminou-se por um tempo enquanto ouvia o solado do scarpin na rua escura. Desculpar-se-ia. Caminhou resoluta até o ninho de amor dele. Esperava encontrá-lo tão arrasado quanto ela, cheio de remorso. Outra pincelada vigorosa. Esquerda. Direita. Meio. A maldita gritou quando a viu aos pés da cama! Ele, em sua luxúria de macho alfa, achou que fosse a mulher sobre ele, extravasando seus extintos animais. Demorou a abrir os olhos e ver o ódio estampado na face da namorada a contemplá-los em sua volúpia. Agora, ex-namorada. O pincel quase foi ao chão quando sua mão tremeu diante da lembrança.

A loira rolou de lado. Ele ainda teve a ousadia de convidá-la a se juntar a eles. O tubo cor de pele varreu a parte central da tela. Suas mãos tremiam. Um misto de desejo quase a fez ceder quando o viu estender as mãos, sorrindo manso, seduzindo-a. Que mal haveria? Derrubou o pincel. Fechou os olhos, tentando apagar aquela imagem que a atormentava. Ele era um homem de muitas. Talvez sua beleza o fizera assim. Precisava possuir e ser possuído. Mas jamais sob amarras. A vadia também lhe sorriu. Com certeza o conhecia melhor do que ela.

Um toque de preto e deixou a dor fluir. Deu um passo à frente, então o ódio a dominou. Quase se deixara enganar. Por pouco, insensata, não se embrenhou no meio deles. Apertou o pincel, como se o pobre fosse o culpado. Deixou aquele maldito lugar esperando que ele viesse atrás dela e visse o quanto fora idiota, pela segunda vez. Um borrão! Não veio. Esperou alguns minutos e nada. Pegou a espátula. Colocou os ouvidos na porta. Amarelo da direita para a esquerda. Ele gemia. A vaca também. Negro. Na tela e nos olhos.

Saiu batendo o salto na penumbra do corredor, sentindo o coração martelando nos ouvidos. Marrom. Seus olhos enxergavam apenas o vermelho sangue. Deixou o prédio com a respiração acelerada. Alguém buzinou quando atravessou a rua sem olhar para os lados. Magenta. Encostou o corpo no prédio vizinho. Deixou o soluço romper o vazio da noite. Carros passavam velozes pela rua quase deserta. Pensamentos destilavam ameaças. Por que com ela? Voltou, abandonada, para a segurança do lar, onde tudo era familiar e calmo. Branco. Pegou o vinho na geladeira. Roxo. Uma, duas, três taças que bebera feito água. Preto. Voltou a garrafa para a geladeira, quase na metade. Olhou a primeira hora da manhã chegar mansa. Seu olhar endureceu. Azul. Nada no celular. Nenhuma mensagem. Ainda ontem ele havia lhe dito que seu sonho era se casar. Ter filhos. Já estava na hora de assentar. Laranja. Tinha certeza de que lhe falara ao ouvido por tê-la escolhido.

Sépia. Pegou a bolsa. O carro. Ele teria que lhe dar algumas respostas. Pele. Estacionou dois quarteirões longe do prédio. Precisava caminhar novamente. Refrescar as ideias embriagadas. Prestava atenção apenas nas batidas rítmicas dos passos apressados. Esse compasso a acalmava e ao mesmo tempo lhe dava coragem. Agora sim. Turquesa. Da cor daqueles olhos mentirosos. Esgueirou-se pelo saguão do prédio. O vigia estava distraído ao interfone. Ganhou as escadas. Teria coragem? Um pouco mais de tempo. Misturou marrom e amarelo. Tentaria a porta. A vadia teria ficado. Com certeza, ela ficaria. Não perderia a oportunidade de acordar nos braços meigos do traidor. Girou a maçaneta. Pele. Lá estavam os dois. Saciados. Adormecidos no sono dos justos. Ficou um tempo contemplando a cena. A bagunça na sala, revelando as roupas espalhadas, lhe revirava o estômago. Verde. Musgo.

Sentiu vertigem. Respirou. Clareou as ideias. Abriu a bolsa devagar. Quem iria primeiro? Ele? Ela? Ela? Ele? Negro. Ele! Andou em silêncio. Não seria bom se acordassem. A vadia estava do lado esquerdo da cama, de bruços. Ótimo. Cinza. Ele ronronava. Ela adorava aquele som. Mas não se permitiria levar. Vermelho. Contemplou os dois, num sentimento profundo. Tudo escureceu.

Havia sangue em suas mãos misturado à tinta, mas ela nem percebeu. Gostava de usar os dedos, além dos pincéis. Um último gole, antes de deixar a garrafa escorrer. Riu feito menina. Branco. Precisava dar um pequeno efeito de luz em algum lugar da tela, ela se lembrava. Mas abraçou o corpo e girou no ar, feliz. Estacou em frente à tela, horrorizada. Ele estava bem à sua frente. Sorria com olhos mortos, mostrando dentes manchados de sangue. Ela gritou, fechando os olhos, enquanto seu corpo tombava desacordado.

Toques estridentes da campainha a trouxeram de volta.  A cabeça doía na luz estridente da manhã. Ergueu-se confusa. As mãos marcadas de um vermelho queimado, seco. Limpou-as no vestido. Caminhou trôpega até a porta e girou a maçaneta. Dois homens uniformizados pediram para entrar. Encarou-os perplexa. Disseram ter algumas perguntas a fazer. Ela assentiu, atordoada. Perguntaram se ela o conhecia. Sim. Por que negar? O que é isso em suas mãos? Tinta. Passei a noite pintando. Um deles pediu para ver a obra. Ela não negou. Nem sabia o que colocara naquela tela. Apenas despejara seus sentimentos sombrios.

Os três contemplaram a profusão de cores em silêncio. Ela gritou e foi amparada por um deles. O amante permanecia na cama e de seu peito aberto jorrava sangue, encharcando o carpete. A loira estava no chão, encolhida entre a cama e a parede. A mão pendia desamparada no lençol que lhe cobria parte do corpo. Havia um grito mudo em seus olhos castanhos opacos, revelando um ferimento que abria a boca até a orelha. Uma faca fora cravada no alto da cabeça. Na parede atrás da cama, em vermelho sangue, a palavra: TRAIDOR.

— Venha conosco, senhora.

— Eu não entendo. Por que estou sendo levada?

— O quadro. — Respondeu o jovem simpático, contemplando-a desconfiado.

— O que tem ele? — Perguntou sentindo o ódio avolumar-se dentro dela. — Não posso mais me expressar? Você quer o quê? Uma pintura de natureza morta?

— Senhora, venha conosco. O vigia do prédio disse tê-la visto se esgueirando pela escada na noite passada.

Ela nem pensou em negar. O desgraçado estava ali, rosto plúmbeo, sorrindo num esgar ao lado dos policiais. Segurou o grito confesso. Nem morto a deixava em paz. Maldito.

— Preciso ir ao quarto pegar minha bolsa.

— Por favor, não demore. Vou levar a tela para a delegacia.

— Não.

— É sua confissão.

Ela o encarou com o cenho franzido. Seguiu para o quarto, conduzida por mãos de aço. Disse que iria ao banheiro. Pediu para que o jovem fardado esperasse do lado de fora. Não demoraria. Fechou a porta atrás de si e segurou o grito na garganta. Lá estava ele na porta da varanda, chamando-a para a escuridão. Seus lábios sorriam, entretanto o olhar era aterrador. Estendia-lhe a mão em convite. Ela olhou para a porta que gemia nas mãos de aço que a açoitava. Sabia o que a aguardava. Encarou-o mais uma vez, aquiescendo.

Seu último pensamento, antes de saltar para o vazio, foi para a tela no suporte. Não havia arrependimento. Aquele fora seu melhor trabalho. 

Conto escrito por
Amanda Kraft

Música
Vem Me Dar Calor - Lamaris

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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