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Antologia Lua Negra: 3x05 - A Outra Face

Conto de Isabelle Condor
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Sinopse: Em meio a acontecimentos estranhos após se afastar de sua família, Clara, decide sair de sua rotina e tentar descobrir o que realmente a persegue desde sua infância e a faz ser tão peculiar assim.


A Outra Face
de Isabelle Condor


Há cerca de alguns meses isso me vem ocorrendo. Meus sentidos falham em suas funções básicas. Na parte superior, tenho a sensação que meu crânio está sendo estilhaçado e meus globos oculares irão sair de minha face. Meu corpo suplica por morfina e, certas vezes, até por eutanásia. Não importa o que eu faça para evitar. Sinto o peso da gravidade me puxando enquanto tudo se transforma em escuridão. Após essas crises, costumo acordar em locais estranhos. Becos, quartos de hotéis, com feridas e hematomas pelo corpo, e até com diversas garrafas de bebidas ao meu redor. Sei que esse estilo de vida não se encaixa com o meu, mas não sei como parar isso.

Sinto como se estivesse morrendo certas vezes, mas meu lado lógico cria a hipótese sobre ser somente obra da minha mente. Similar ao efeito placebo ou quando um paciente ansioso sente que vai infartar, mas no fim é somente ansiedade. Talvez eu esteja ficando louca. Como não posso confirmar   sozinha tudo isso, decido ir ao encontro de um profissional.

Sento em sua sala, fria e clara, esperando o médico calvo emitir suas primeiras palavras. Sua voz soava como a de um fumante, mas não posso julgá-lo após meus últimos meses. Conto a ele todos os sintomas, esperando uma resposta sobre minha possível loucura. Entretanto, arrumou seus óculos, descansou a caneta na mesa de vidro, olhou diretamente em meus olhos e disse:

 -Senhorita Clara, além desses sintomas, alguém próximo notou alguma mudança repentina em seu comportamento? – Falou o doutor calvo com sua voz pigarrenta.

 O médico falou de modo monótono não mostrando grande interesse em meu relato excêntrico. Sinto-me constrangida em dizer que não tenho pessoas próximas, pelo menos não no Rio de Janeiro. Trabalho em casa como programadora “front-end”, então não tenho muito contato, pelo menos ao vivo, com pessoas. Então creio que meus peixes são os seres vivos com quem eu mais possuo contato ultimamente, mas eles não serviriam como bons relatores de minhas ações. Então só respondi com um sorriso amarelo:

 -Não, ninguém comentou nada sobre minhas ações – disse tentando soar o mais sociável e normal possível.

 Ao final da consulta, ele me receitou remédios para dormir. O que me fez refletir sobre o preço da consulta e, que talvez o problema só parecesse grande em minha cabeça.

Já se passaram 2 anos desde que me distanciei de minha família. Não é como se houvesse ocorrido algum grande conflito, ou como se eles fossem péssimos parentes. Porém, havia algo dentro de mim que não os agradavam, segundo eles. Quando criança, fui levada a diversos locais. Desde igrejas, médiuns, pastores e até monges. Mas minha família acreditou nas palavras de uma Xamã. Ela dizia que toda mudança de lua o mau se aproximava de mim. Mesmo que eu não compreendesse o que ela queria dizer, minha avó utilizou de suas palavras como absolutas. Começou a utilizar o calendário lunar para fazer suas orações por mim. Mesmo que eu tenha poucas lembranças desses dias, me recordo dela preparando as velas e os terços para quando anoitecesse. Além dos rituais em noites de lua negra, tudo para afastar o suposto mau que havia em mim. Atualmente, penso se não teria sido melhor eles terem buscado ajuda médica. Ao menos eu poderia poupar dinheiro com consultas e remédios para dormir, agora.

 

Algumas semanas se passaram após a ida ao médico. Mesmo que não tenha sido tão efetiva assim, ao menos, agora, posso ter noites de sono efetivas em alguns dias estressantes. Contudo, sinto que somente sedativos não vão resolver de fato meu problema principal: As marcas em meu corpo, os locais onde acordo e os hábitos, incomuns, que apresento. Tudo isso, sem ter recordação alguma.

Ouço meu celular tocar. A tela exibe com clareza número desconhecido. Normalmente não tenho o costume de atender por supor que seja de alguma companhia telefônica ou alguém querendo vender algo que eu não esteja interessada. Mas nesse dia, por algum motivo, decido atende-lo. Havia a voz rouca de um homem ocupando o outro lado da linha. Ele soava como alguém conhecido, por mais que eu não conseguisse reconhecer seu timbre. Todavia, o que antes pairava como dúvida, para mim, se transformou em desespero. Minha espinha gelou quando o mesmo indagou:

-Você não se esqueceu do nosso encontro amanhã no centro, certo Elena?

Fiquei estática por alguns segundos. Aquele não era meu nome, mas algo me dizia que aquela ligação não foi feita por engano. Minha mente estava tentando processar o que eu teria escutado. Enquanto isso, meu corpo ainda estava ali, com o celular em minhas mãos, sem dar resposta alguma àquele homem.

Quando retorno de meus pensamentos, percebo que ele ainda estava falando. Em uma ação imprudente, decido responder como se fosse essa tal de Elena, por mais que me chame Clara.

-Claro, como eu poderia esquecer! Amanhã, claro, certo...

Ele responde com um tom de dúvida. Deixando claro que estava desconfiando de algo.

-Elena, sua voz parece um pouco diferente desde que nos falamos pela última vez. Você está bem? – Disse o desconhecido mudando o tom de sua voz.

Claramente minha voz era diferente dessa Elena, por mais que pudesse ser similar, eu ainda não era ela e muito menos sabia ao certo quem era a mesma. Respirei fundo, tentei pensar em algo coerente para dizer a ele, mas tudo o que saiu foi:

-Ah, sim. É que estou um pouco resfriada – Clara falou tentando parecer o mais rouca possível.

 Seguido por uma tosse forçada.

 

Tudo prossegui bem até o fim da chamada. Pelo menos ao meu ponto de vista como falsa Elena. Ele reafirmou que o encontro seria no centro da cidade, nove da noite em um dia de lua negra. Meu lado racional revia toda essa situação e analisa todos os potenciais perigos que estão ou podem estar envolvidos nesse encontro às cegas. Porém uma parte de mim lembrava das orações lunares que minha avó fazia para espantar o mau que havia em mim. Enquanto o dia não passava, meu coração e mente lutavam para se concentrarem em outra coisa a não ser esse encontro com um desconhecido.

Pego a embalagem de remédios para dormir, receitados pelo médico que não deu grande importância para meu problema. Engulo dois comprimidos e tento dormir aquela noite. Chego a me questionar novamente se realmente tudo o que sinto é real ou obra de minha imaginação fértil.

No dia seguinte, tudo ocorria de um modo tão rápido que cheguei a perder a noção do tempo. Quando me dei conta, não só estava prestes a me encontrar com um homem desconhecido, como também não sabia ao certo o motivo do encontro e nem a desculpa que iria dar por fingir ser alguém que não era. Tudo soava como um pesadelo sem fim. Antes que eu decidisse desistir, percebi que já estava na estação a espera do metrô.

Sigo devagar, mas com o coração pulsando cada vez mais apressadamente a cada passo que me aproximo do local marcado. Sinto como se já estivesse passado por ali antes, talvez em sonhos ou em algum momento de pouca lucidez de acordei em algum lugar diferente que minha casa. O caminho começava a soar familiar. Enquanto a minha cabeça tentava buscar memórias que me aproximavam desse destino supostamente desconhecido, meu corpo se encontrava em um estado de adrenalina ao passar por restaurantes e portas de boates com diversas pessoas ao redor.

Em meio ao amontoado de gente, observo um rosto familiar. O encaro e o mesmo estende um de seus braços em direção a noite sem lua e acena para mim. Vou em sua direção, por mais que por dentro eu sabia que não tinha amigos na cidade do Rio. Antes mesmo que eu pudesse dizer “oi”, ele me abraça e diz com uma voz rouca:

- Elena, como você está diferente! Gostei do novo visual – ele enquanto me abraçava em meio a multidão da noite na Lapa.

Senti meu coração parar. Ele era o homem da ligação? Como ele me reconheceu de tão longe se eu não sou a Elena? Haviam muitas perguntas pairando em minha mente, mas eu precisava retornar à realidade para tentar obter respostas concretas.

Me despendi de seu abraço.

-Você sabe quem sou eu? Sabe que não sou a Elena, então quem seria ela? – disse Clara de modo ríspido, esperando que o mesmo respondesse suas perguntas.

- Clara, certo? Ela me disse sobre você, só não esperava te encontrar hoje – o homem deu uma pausa enquanto olhava para o céu sem lua aparente – Como você está se sentindo?

Olhei para ele enquanto encarava a noite profunda com um olhar confuso.

- Quem te contou sobre mim? Como sabe meu nome? - respirei fundo, buscando controlar toda ansiedade e euforia que havia dentro de mim - Aliás, qual é o seu nome?

Seu olhar retornou para meu rosto e pude perceber que em seu semblante habitava calma, um extremo oposto do meu.

- Elena falou sobre você, mas parece que ela não contou nada sobre mim. Sou o Luca.

Me sentia mais confusa nesse momento do que antes. Eu deveria conhecer essa mulher? Como um desconhecido sabe sobre mim? Seria ele um “stalker”? Senti a dor que me levou até o médico. Tudo parecia se dissolver em neblina. Minha cabeça doía, meu corpo suplicava por descanso. Era como se tudo fosse desligar naquele exato momento. “Por que está acontecendo justo agora?” pensei enquanto sentia o peso do meu corpo indo em direção ao chão da Lapa.

Lentamente abro meus olhos e sinto a luz machucar minha visão. Levanto de um sofá e observo o estranho ambiente que me encontro. Certamente não era minha casa, mas também me parecia familiar. Observo a decoração minimalista, os quadros coloridos e algumas frutas na mesa de jantar.

- Bom dia, como você tá, Elena? – Luca, o homem com quem me encontrei na noite anterior disse se referindo a mim, já que não havia outra pessoa no ambiente.

Não virei meu corpo, tentei manter a calma antes de questionar o motivo do nome. Em minha memória está presente o fato que me apresentei como Clara.

- Já não te disse que me chamo Clara?

- Então é a Clara? Tudo bem! A Elena te deixou um recado – disse em tom irônico enquanto me entregava o celular dele com um vídeo na tela.

No vídeo gravado com a câmera frontal, estava eu. Sim, Clara. Porém as roupas eram diferentes do usual e a maquiagem era extravagante. Eu estava segurando uma taça de vinho, com a borda marcada com meu batom vermelho. Direcionei meu olhar para a câmera. Era um olhar diferente e gritava perigo. Eu não me reconhecia. Ao se passarem cerca de trinta segundos sem dizer nada, eu posiciono o celular em algum local estável e sento no sofá de Luca para continuar a gravação.

-Acho que finalmente vamos nos conhecer, não é Clara? – dou um gole na taça que estava em minha mão.

-Eu sou a Elena, faz um tempo que eu queria te conhecer, mas tinha quase certeza que se você soubesse da minha presença tentaria na mesma hora achar algum médico para acabar comigo – disse em um tom sério olhando no centro da câmera.

-O Luca está com a gente faz um tempo, não se preocupe, ele já sabe sobre nós – virou o celular para o lado, mostrando o homem no canto lendo um livro.

-A nossa família estava certa sobre existir algo em você e que a lua estava envolvida – respirou fundo – Mas não quando me chamaram de má – disse enquanto ria.

O vídeo se encerrou e tudo parecia como um sonho para mim. O que acabei de assistir seria real?

Quando olho para trás, observo Luca lendo um livro calmamente no sofá. Como se toda aquela situação fosse algo completamente normal para ele. Vou em sua direção e me sento ao seu lado.

- Tudo isso foi real? – digo para ele me referindo ao vídeo.

Ele fecha o livro com delicadeza, se vira para mim e suspira.

-Sim, Clara. Faz um tempo que descobri sobre sua dupla personalidade.

- Mas normalmente a Elena só aparece quando é noite de lua negra ou algo de ruim acontece. – Ele pausou sua fala e diretamente em meus olhos – É ela quem normalmente te protegia quando sua família te abusava por achar que havia algo errado com você.

Lembro das orações de minha avó, mas não tenho muitas memórias de minha infância e de minha família. Talvez seja por ter precisado criar Elena para passar por tudo isso em meu lugar. Eles eram o mau, e não ela.



Conto escrito por
Isabelle Condor

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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