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Cine Virtual: O Segredo do Padre Tenório

Conto de Lô Saraiva
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Sinopse: Um respeitado padre do interior de Minas Gerais, está saturado de ouvir certas confissões acerca de um indivíduo mal quisto na paróquia. Contudo, ele encontra um meio bastante peculiar de lidar com elas.


O Segredo do Padre Tenório
de Lô Saraiva

 

Quando o padre abriu os olhos naquela lânguida manhã de janeiro, e olhou para a janela, deparou-se com uma paisagem nublada. Por debaixo do camisolão que usava para dormir, sentia o suor lhe escorrendo pelas dobras. Se estava calor às sete da manhã, que diria ao meio dia. 

Levantou-se bem-disposto, apesar da alta temperatura, fez sua higiene e tomou seu café preto com bolo de milho. O bolo quentinho e saboroso, típico daquela região de Ouro Preto, foi entregue por Lalinha, sua devotada sobrinha. Uma moça bem quista, gentil, prendada, mas feia como o diabo; gostava de prestar gentilezas para seu tio preferido. Como não havia se casado, com satisfação ajudava em tarefas paroquiais, pelo simples prazer de ajudar. Naquele dia, pela manhã bem cedo, ela fez a entrega do bolo na residência paroquial, e rumou em peregrinação com a irmandade carmelita que fazia parte.

Depois do desjejum, Padre Tenório seguiu para a parte dos fundos da igreja, onde ficava o confessionário. Fez uma oração, e ficou sentado, à espera dos confessores. Todos os dias, o padre seguia uma rotina rígida: de oito ao meio dia ficava no confessionário, meio dia parava tudo para almoçar, de meio dia à uma fazia a sesta, e de duas da tarde até as sete da noite rezava suas missas.

Pouco depois de acomodar-se no confessionário, sua primeira confessora do dia chegou. Apenas pelos passos ecoando do lado de fora, o ouvido de tuberculoso do padre já adivinhou quem era. Era ela, o pecado em pessoa, o único ser que poria em prova a castidade de um santo: Dona Margarida. O nome que sugeria inocência e beleza, de fato, não era compatível com a força da natureza que era Margarida. Já não era jovem, e não era de um todo bonita, mas possuía um elemento X em sua composição, que atraía olhares por onde passasse. Alguns diriam que era sua comprida cabeleira negra cacheada, outros alegavam que a culpa era de seus quadris, largos e fartos, de seus lábios, da textura da pele nua dos ombros, do riso solto, etc etc. Na verdade, ninguém sabia distinguir, com precisão, o que era esse tal "je ne sais quoi" que Dona Margarida possuía. Só se sabia que ela possuía.

Mãe de dois filhos adolescentes, Thiago e Julieta, era também viúva.

--- Padre? --- ela sussurrou, ajoelhando no degrau do confessionário. --- o senhor já está aí? Sou eu, Margarida.

--- Bom dia, minha filha.

A voz de margarida era outro mistério, quase contraditória; era uma voz de mocinha ingênua, que lhe conferia a simpatia imediata de gregos e troianos.

--- Padre, vim porque pequei.

--- Qual seu pecado minha filha?

--- Eu desejei mal a um homem. O dono da padaria, Seu Cristóvão.

Suponho que, como ilustramos a figura de Margarida muito bem, devemos fazer o mesmo com Seu Cristóvão. O homem em questão, era unanimemente odiado. Era odiado por crianças, por velhos, por moças, por rapazotes, pelos ricos, pelos pobres, pelos enfermos e pelos de saúde vigorosa. Tamanha era sua sina, que até os bebês choravam diante de sua presença. Na vila, havia sido apelidado de "sete peles", "peste", "praga", "maldito", e o preferido da criançada: "furúnculo."

Ninguém sabia exatamente o motivo de tanto ódio. Por ali, as crianças nasciam o odiando, e os idosos morriam o odiando. Era um sentimento universal. Sua pessoa era, e isso ninguém podia negar, um tanto quanto desagradável, indigesta, nauseante. De tudo ele reclamava, todos ele condenava, e de nada ele gostava. Não tinha esposa, nem filhos, e nem amigos. Sobrevivia das vendas da padaria, e vivia somente para si. É claro que, as mesmas pessoas que lhe malhavam, eram as mesmas que comiam seu pão todo santo dia, mas essa é outra história.

--- Eu fui essa manhã à padaria, bem cedinho. Minha intenção era comprar pães fresquinhos antes que meus filhos acordassem. Contudo, tal qual foi minha surpresa, quando ao entrar na padaria, estando eu, uma jovem senhora, desacompanhada, recebi uma cantada vulgar do próprio dono! Para mim, foi a gota d'água! Imagine que essa besta conheceu o meu Henrique, que Deus o tenha! E mesmo assim, se achou no direito de me cortejar! Fiquei fora de mim, padre! Fora de mim! Apanhei os pães, pois sim, mesmo com raiva, ainda tinha fome, e saí, o amaldiçoando!

--- A senhora o amaldiçoou? --- perguntou padre Tenório, tentando acompanhar o relato.

--- Isso mesmo, padre! Eu disse que ele podia começar a rezar, porque em breve ele estaria queimando no inferno!

--- Isso não são modos de uma senhora cristã, Dona Margarida. --- repreendeu o sacerdote. --- Bem, sempre podemos contar com a misericórdia divina, por isso reze vinte ave marias, e vinte pai nossos.

Conforme pedido, Margarida rezou, se despediu e foi embora.

Pouco depois, o segundo confessor do dia chegou.

--- Padre, sou eu, Thiago. Gostaria de me confessar.

Thiago era filho mais velho de Dona Margarida. Conhecido por seu temperamento doce, por seus bons modos, e por ser, de forma geral, um bom menino, virava fera quando algo acontecia à sua amada mãe.

--- Padre, eis me aqui, implorando o perdão divino, sou um pecador.

O padre fez sinal de que estava ali, e Thiago começou:

--- Agora pouco fiz mal à um homem. Imagine que estava com Verinha, essa manhã, quando minha mãe trouxe-nos o café. Pão e leite, comprados na padaria do maldito. Mamãe nos relatou a grosseria que sofreu da peste, e imediatamente, eu larguei o pão, o leite, e Verinha, e corri até a padaria. Chegando lá, aproveitando a deixa que o pilantra estava sozinho, dei-lhe um soco bem nas fuças. O maldito voou! Eu morri de rir, Padre! Mas, depois, a caminho de casa, fui sentindo-me bastante culpado, até que decidi vir aqui. Pois eu sou um homem de bem!

--- Thiago, eu te conheço desde criancinha. --- fez o padre. --- o que lhe deu para agir assim!? Vamos, vamos consertar isso! Reze cinquenta pai nossos, e cinquenta ave marias, que o Senhor será misericordioso.

Aborrecido, o menino rezou, agradeceu e se retirou.

Assim que ele se foi, novos passos chegaram. O padre ouviu um ruído, e a nova voz pecadora se pronunciou:

--- Padre, vim porque pequei. Sou Julieta.

A bela e jovem Julieta era uma versão em miniatura de Dona Margarida. Diferente do irmão, não era uma criatura doce e dócil, era famosa por ser uma pimenta, uma espoleta. A jovem que não levava desaforo pra casa, como todos os outros que ali moravam, também não gostava do tal Cristóvão. Mas toda a sua personalidade tempestiva era disfarçada por seu rosto angelical.

--- Padre, imagine que eu feri um homem! Oh, quase não me arrependo... Mas, ao mesmo tempo, me arrependo! Que Deus me perdoe! Hoje, a caminho da escola, vi uma cena grotesca! Nos fundos da padaria do Seu Cristóvão, estava uma caixa de papelão atravancando a passagem para o beco. Como sou curiosa, corri para ver o que havia dentro dela, mas tal meu susto! Ali dentro, havia uma matança de animais! Dezenas de gatinhos, filhotes, ainda sem pelo, massacrados, mortos! Ao ver aquilo, vomitei e fiquei me tremendo toda! Sem pensar em nada, adentrei a padaria, e perguntei ao dono o que significava aquela matança descabida! O homem, ou melhor dizendo, o monstro, me olhou sem pesar, e cinicamente respondeu que os bichinhos não pararam de miar a noite toda, os filhotes! E que por isso, ele os matou! Ensandecida, eu lhe acertei com um arranjo de vidro de uma das mesas da padaria. Ele caiu, ficou inconsciente, e eu fugi! Oh, padre, será que eu o matei?!

Depois do sermão e da penitência, Julieta deixou a igreja, mais calma. Em seguida, outro pecador, afobado, ajoelhou no confessionário.

--- Padre, me chamo Joaquim, e provavelmente o senhor não me conhece, já que eu nunca venho à missa. Mas estou aqui porque neguei ajuda à um moribundo.

Joaquim era filho único do sapateiro do vilarejo. Como seu pai idoso já não trabalhava há tempos, tinha artrite e outras doenças, era Joaquim que provia o lar. 

--- O caso foi que, passei na padaria para ver se Seu Cristóvão podia me dar algum pão. O senhor sabe, padre, que meu pai e eu estamos na miséria. Não consigo vender nada e todo o dinheiro que temos é para pagar os remédios dele. Então, pensei que talvez eu pudesse apelar pra caridade de um homem que tem pão pra dar e vender. Acontece que, quando cheguei na padaria, encontrei o dono inconsciente, atrás do balcão. Sua testa sangrava, e ele agonizava.  Fiquei espantado e corri para ajuda-lo, mas no momento em que me viu, ele começou a gritar, me expulsando! Fiquei tão bravo que desisti de ajuda-lo. E o pior é que ainda estamos famintos!

Horrorizado com as confissões, o padre aplicou a penitência ao jovem, e em seguida se preparou para deixar o confessionário. "Chega por hoje!", pensou agoniado. Almoçou na sacristia, mas não foi capaz de pregar os olhos depois; sempre que fechava os olhos, via diante de si o rosto ferido do dono da padaria. 

Com esforço, levantou-se e foi viver o resto da tarde. Deu suas missas, e por fim, foi recolher-se.

No dia seguinte, repetiu sua rotina. A noite de sono havia sido boa, e ele sentia-se revigorado! Café e oração: era tudo o que ele precisava para começar seu dia. Depois de forrar a barriga, ele rumou para o confessionário.

A primeira a confessar, naquela quarta-feira ensolarada, foi Thelma, a enfermeira.

--- Padre, sou eu, Thelminha. Vish maria, padre, eu pequei! 

--- Deixe-me adivinhar? Seu Cristóvão?

--- Oxente, homem! --- bradou Thelma, fazendo o sinal da cruz. --- virou adivinha agora é?!

De dentro do confessionário, o padre riu e pediu para que ela continuasse.

--- Ontem à noite, no meu turno, eu atendi o dono da padaria, que me apareceu com um corte danado de feio no meio da testa! Homessa! Eu corri para atende-lo! Ele estava perdendo muito sangue. Mas o pior, padre, é que mesmo com a testa aberta, o infeliz ainda aprontou! O senhor acredita que, enquanto eu lhe aplicava os pontos, ele passou a mão na minha bunda?! Fiquei furiosa, e mantendo o sangue frio, costurei sua testa. Meu pecado, padre, foi que fiz sem anestesia. Eu estava furiosa! O infeliz sentiu cada ponto entrando na sua carne. Ele se esgoelou até eu acabar de dar o vigésimo ponto, e por fim, desmaiou de exaustão e dor. Essa manhã ele recebeu alta.

Thelma rezou sua penitência, e se retirou.

Quinze minutos depois, o padre cochilava no confessionário quando ouviu a voz de um homem.

--- Padre, sou eu, Manoel. Me ajude, por favor, eu estou em débito com Deus!

Manoel era o jornaleiro local, namorado da enfermeira Thelma. Boa gente, mas terrivelmente ciumento, ficou transtornado depois de ouvir a queixa de Thelma sobre o nosso vilão.

--- Esta manhã eu acho que matei um homem. Depois que minha namorada me contou sobre o abuso daquele velho tarado, eu corri atrás dele! Quando cheguei em sua casa, tive a sorte de encontrar o maldito entrando em casa. Sem pensar, eu o empurrei, e ele caiu nos degraus de sua porta de entrada. O ferimento em sua cabeça abriu novamente quando ele bateu a cabeça. Em seguida, eu fugi.

A cabeça do padre Tenório estava rodando. Tudo o que ele ouvia era uma ladainha sem fim sobre aquele maldito Tenório! Sem aguentar mais, ele penitenciou o jornaleiro, e o mandou embora. No instante em que se viu outra vez sozinho ali, ouviu passos de um próximo confessor.

--- Padre, queira me perdoar, pois pequei. --- disse uma voz macia de mulher. --- meu nome é Rosália, e eu sou prostituta. 

Rosália fazia parte do Bordel de Madame Sheila. Jovem e bonita, era uma das mais requisitadas da casa. A preferida de Seu Cristóvão.

--- Hoje de manhã, fui até a mercearia comprar um veneno de rato, visto que meu casebre está infestado, e à tarde, fui "atender a domicílio", na casa de um cliente que não desejo revelar o nome, foi então que levei um susto! Encontrei-o desacordado na frente de sua casa. Ao me ver, o pobrezinho suspirou de alívio. E sem mais demora, eu o ajudei a se levantar e entrar em casa. Uma vez acomodado em sua poltrona preferida, me certifiquei de que ele tinha tudo o que precisava. E quando já estava animada para começar a "trabalhar", sem mais nem menos, ele pôs-se a me ofender. Disse coisas horríveis para mim, padre! E lembre-se que eu o ajudei! Que tola! Pois bem, ele me ofendeu, e eu resolvi dar o troco. Sem aparentar aborrecimento, disse que iria até a cozinha preparar para nós um chá. No momento em que me vi sozinha, joguei um pouco do veneno para rato no chá do infeliz. Quando retornei para a sala, ofereci-lhe o chá, e ele bebeu com vontade. Menos de cinco minutos depois, começou a estrebuchar com a mão na barriga. Foi quando eu dei no pé. É claro, ele mereceu, mas eu ainda temo a ira do Deus nosso Senhor...

Atordoado, sentindo o coração batendo forte, o padre exclamou:

--- REZE MIL AVE MARIAS, E SUMA DAQUI!

Apavorada com aquele inesperado tratamento, Rosália disparou igreja afora.

Durante seu cochilo após o almoço, o pobre padre Tenório ainda ouvia os sussurros, as queixas, as infinitas reclamações sobre o dono da padaria.

"Padre, eu pequei... Padre, o dono da padaria... Padre, aquele maldito! Padre, odeio o Seu Cristóvão... Padre, padre, padre!"

Suando, o sacerdote acordou gritando do cochilo. A boca seca, o peito em brasa, ele não conseguia se ver livre das confissões, e do monstro por trás delas.

Encerrou o dia mais cedo, e antes das seis da tarde, deixou a igreja.

Algumas horas depois, quando já estava de volta ao confessionário, o pobre sacerdote sentia-se mais calmo. Sentia a paz que precisava para absorver todos os filhos de Deus. Preparado para mais horas de confissões, ele recebeu o primeiro confessor do dia com novo ânimo.

--- Padre, sou eu, Nelsinho. O senhor lembra de mim? Eu sou irmão mais novo do jornaleiro, namorado da Thelminha, lembra? Talvez não, eu ando muito afastado das missas. Mas não é culpa minha, padre! O vestibular exige muito de mim. 

--- Vá direto ao ponto, meu filho. --- pediu o padre.

--- Ai de mim, padre! Me alegrei com a desgraça de um homem! Desde essa manhã, não se fala em outra coisa por aqui que não o assassinato do dono da padaria! Dessa vez o maldito pereceu de vez! Encontraram o corpo esfaqueado dentro da banheira! Quem encontrou foi o Zezinho, ajudante da padaria, e imediatamente, saiu correndo, gritando e acordando Deus e o mundo. Mas, longe de lamentarmos o ocorrido, eu e todos, festejamos a morte daquele desgraçado! E até brindamos! Um bom copo de cerva gelada para cada um daqueles que já foram sacaneados por aquele bandido! Foi só depois que o corpo foi recolhido, que eu caí em mim, e vi que comemorar a morte de outrem, não importa quem ele seja, não é um ato cristão.

Sentindo-se outra vez nervoso, o padre penitenciou o menino, e ato contínuo, correu para a sacristia. Suava em bicas, seus nervos estavam em frangalhos, e ele via o mundo ao redor girar. Por fim, ajoelhou defronte uma imagem de Jesus crucificado, em uma insana prece:

--- Deus, sou eu, padre Tenório. Estou aqui pois pequei, meu Pai. Pequei, pois, apesar de padre, sou um homem, como qualquer outro! E o pior de tudo, pequei para nada, matei o infeliz e ainda escuto reclamações sobre ele!


Conto escrito por
Lô Saraiva

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Márcio André Silva Garcia
Ney Doyle
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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