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Antologia Romance à Vista: 1x03 - A Viagem de Trem

Conto de Sonia Re Rocha Rodrigues
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Sinopse: Duas pessoas que se conhecem por correspondência encontram-se durante um fim de semana e embarcam no mesmo trem para voltar para casa. Durante o trajeto, sua relação transforma-se em um romance.


A Viagem de Trem
de Sonia Re Rocha Rodrigues


Houve um tempo em que os poetas encantavam as pessoas com suas alegorias, os trovadores declamavam e toda gente aguardava os jornais de domingo para ler os versos escolhidos da semana.

            Nesse clima criou-se Cecília, rica por nascimento e com poesia na veia. Ela formou-se professora por ser a faculdade possível, casou-se por amor com o pretendente escolhido pelos pais, sem que na frase haja alguma contradição - como filha obediente, ela amaria o noivo que lhe apresentassem. Assim seguiu sua vida, previsível, cristã, ordenada, até o dia da fatídica viagem de trem.

Cecília era uma ávida leitora, mas sua estreia como autora aconteceu certa noite em que o filho sofria de cólicas. Na vigília que se seguiu, os versos brotaram de sua alma. Ela acolheu, curiosa, aquela estranha invasão de rimas em seus pensamentos, e nunca mais parou de escrever.

            Apesar da oposição do marido, publicou suas trovas em todos os jornais e revistas que sabia aceitarem trovas e sonetos. Depois de algum tempo, eram os editores que a perseguiam, pois, os leitores queriam mais. Publicou um primeiro livro, depois um segundo, recebeu um primeiro prêmio, seguido por um segundo, um terceiro e muitos outros. Era a fama não procurada, embora merecida.

            Um belo dia recebeu um comunicado - o poeta Inácio estava a fundar uma associação nacional de trovadores e a convidava - melhor, ele a intimava - a ser a vice-presidente. Muita correspondência foi trocada entre eles, até ser decidido tudo, em todos os detalhes. A solenidade de abertura seria no Rio de Janeiro.

            A poetisa mal cabia em si de contente.

Cecília despediu-se do marido e do filho.

            - Voltarei no domingo, nem dará tempo de vocês sentirem minha falta.

            O calor do dia avermelhava as faces risonhas da jovem mulher. Ela acomodou sua valise no banco traseiro do táxi. Ah, como ela se sentia orgulhosa!

             Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, sussurrou para si mesma a metade católica de sua personalidade, mas já que há tempo para tudo, há tempo também para usufruir das pequenas alegrias da vida, retrucou sua teimosa outra parte mundana. Ela se divertia com esses pequenos diálogos mentais, a um tempo inocentes e reveladores.

            Chegando ao hotel, ela vestiu o seu pretinho básico para a festa daquela noite e foi procurar a amiga paulista Irene. Essa escritora ela conhecia pessoalmente. Rindo e tagarelando, as duas amigas foram ao encontro de Inácio.

            - Ah, cá vejo eu duas rosas!  Seu marido também veio, Cecília?

            - Impossível. Jurandir não pode deixar o fórum.

Inácio demorou-se a olhar a colega.

            - Cecília, você é muito mais bonita do que sonhei. Garanto que é uma mulher feliz. Só as pessoas genuinamente felizes têm este olhar entusiasmado e sonhador.

Inácio colocou-se no meio das duas mulheres e de braços dados, dirigiram-se ao salão.

- Cecília vai sentar à minha direita, como manda o protocolo. Irene, acho que a coloquei entre Luís Filipe e Gabriela Gouveia.

- Mais tarde conversaremos mais, Cecília - afirmou Irene - Afinal, teremos o sábado todo ocupado com a programação da associação e domingo… a que horas parte seu ônibus?

            - Ônibus, não. Trem. Reservei lugar no trem das duas horas, Irene, para poder almoçar primeiro, afinal, são muitas horas de viagem.

- Iremos juntos, então, também reservei meu lugar no trem das duas. - exclamou Inácio.

- Que bom! Poderemos falar à vontade, teremos muitos assuntos pelos próximos meses para nos ocuparmos. - Cecília abriu um sorriso largo e demorou-se a contemplar o belo rosto de Inácio. Um rosto que lembrava os querubins barrocos de certas igrejas.

- Venha comigo, Cecília - disse Irene -você precisa conhecer algumas pessoas…Com licença, Inácio.

As duas amigas se misturaram então aos mais de trinta poetas que pipocavam por todo canto, trocando risos, pilhérias, jogos de palavras e muita animação.

            Durante o jantar, Inácio, ao lado de Cecília, fez brindes à sociedade poética que ali nascia, e terminou com um discurso oficial recheado de trovas.

Na manhã seguinte, Cecília atendeu o telefone. Certamente era o marido. Sua voz entediada logo mudou para um tom mais alegre e positivo, ao escutar a voz alegre do outro lado do fio:

            - Minha querida amiga, é cedo para o café, mas tenho assuntos importantes para decidir e sei que você acorda cedo.  Estou no saguão do hotel.

            - Dê-me dez minutos.

            Ela desceu ligeira, o coração disparado, as faces coradas, bem-disposta.

            - Bom dia! - ele a segurou pelos ombros e deu-lhe dois beijos nas faces - Que achas de irmos ao jardim?

            -. Vamos, então, procurar o cenário perfeito para conversarmos sobre poesia.

            - O assunto é espinhoso, porém. Conheces o Mendes? Quero dizer, pessoalmente?

            - Ernesto Mendes? Estudamos juntos dos dez aos doze, quando eu morava em Niterói.

            - Eu pensei que…

- Sim, eu estudei em um desses colégios tradicionais “só para moças”. Esclarecendo: Ernesto e eu estudamos piano. No mesmo conservatório. Ele era meio que vizinho, íamos e vínhamos juntos das aulas com frequência.

            - Ótimo, folgo em saber. Pois esse sujeito me escreve, fazendo oposição à criação da Associação dos Trovadores, porque ele não foi convidado, imagine!

            - Como é que é? Eu nem sabia que Ernesto é trovador.

            - Dos ruins. Você sabe, há trovadores e escrivinhadores de trovas. Tudo que ele escreve é rima de pé quebrado...

            - Mande-o a um ortopedista. - ela sugeriu, rindo.

            - Telefone a ele, por favor.

            - Como? Eu nunca mais o vi…Nem deve se lembrar de mim.

            - Pois ele citou seu nome, como referência, imagine...o sujeito é político, chefe da câmara dos vereadores, não quero ter esse tipo de oposição logo no início da associação.

            - Ele é político, então? Então será facílimo.

            - O que minha interessante colega tem em mente?

            -  Ele quer trabalho? Vamos oferecer a ele.

            Haviam chegado a um caramanchão e ele tocou de leve o cotovelo de Cecília para encaminhá-la para um banco e convidá-la a sentar. Ela sentiu um choque percorrer-lhe o braço e espalhar-se em ondas de calor pernas abaixo.

            - Oh, é cruel, mas penso que ainda vamos ganhar um aliado.

- Fale, Cecília.

            O braço dele estendeu-se por detrás dela, apoiado no encosto do banco. Ele não a estava tocando, mas o gesto permitiu que ele se aproximasse. Ela sentia o hálito dele, fresco e agradável. Ela inspirou profundamente antes de começar a explicar sua ideia:

            - Veja bem, eu telefono a ele, finjo que nada sei sobre a carta… aliás, quando essa carta chegou?

            - Ontem. Chegou muita correspondência, ainda não tive tempo de ler todas as cartas que chegaram para nós.

            - Perfeito. Pois então faça de conta que não leu. Eu digo a ele que estou telefonando porque sei que ele aprecia arte e pode ser de grande ajuda para nós da diretoria.

            - Como…

- Organizando os Jogos Florais de Niterói. Os primeiros jogos da Associação. Claro, como ele estará na organização não poderá concorrer. Assim, ele só ganhará a visibilidade, pois é o que todo político deseja. Vou telefonar às dez, no intervalo da manhã e deixar meu recado.

            A mão dele apertou a dela em agradecimento.

            - Ah, maravilhosa amiga! Que ideia brilhante! Além do talento poético, tem habilidades políticas. Que preciosa mulher.

            Ela correspondeu ao aperto de mão com alegria e levantou-se bruscamente.

            - Creio ter visto um lago com patos ali adiante, Inácio.  Vamos até lá?

- Há um lago com patos e pedalinhos, sim, já verifiquei. Dá para darmos um passeio. Ainda faltam trinta minutos para abrirem o salão do café.

            - Pedalinhos! - ela exclamou - Isso me leva de volta à adolescência. Lá em Guarujá há pedalinhos para alugar na praia, eu ia passear toda semana com meu grupo de amigos durante as férias de verão.

            Lembrou-se de que conhecera o marido em um desses passeios. Ela ficara de ligar para ele naquela manhã, mas esquecera-se. Ligaria na hora do almoço, depois de ter falado com o tal Ernesto, decidiu-se. Afinal, não poderia perder um passeio de pedalinhos no lago.

            - Meus filhos adoram pedalinhos. Certa vez, estávamos de viagem… - as lembranças dele fluíam como uma canção.

            Ela estava consciente da brisa matinal, do perfume das flores, da tranquilidade das águas, das amigas observando pela janela…

            - Bom dia - acenou Cecília com entusiasmo.

            Ele também olhou para o hotel e acenou com energia para alguns rostos curiosos, afirmando:

            - Ótimo exercício para começar o dia.

            Ela o chamou de volta para a conversa:

            - Você estava me contando de seus filhos.

            - Manuelzinho, o mais velho…

            Quinze minutos mais tarde, os dois entraram no café, de braços dados, a gargalhar, em evidente cumplicidade.

            Aproximaram-se da mesa dos trovadores.

            - Seu marido ligou, Cecília, e deixou um recado para você na recepção.

            - Claro que não dissemos onde você estava.

            - Nem com quem.

            - Sabemos como Jurandir é ciumento.

            Risos.

            - Cadê sua esposa, Inácio? Gosto muito dela. Ela sempre o acompanha.

            - Eu pensei que havia dito ontem que Maria Rosa está organizando um concurso público de professores que está acontecendo justamente nesse fim de semana.

            - Porque então você escolheu essa data?

            - Porque nessa data estávamos ambos livres. Até recentemente. O concurso estava programado para quinze dias atrás, mas aconteceu uma chuvarada torrencial, as estradas inundaram, houve até um desabamento de terra que bloqueou o acesso à cidade e então a prova foi cancelada e escolheram uma nova data - justo nesse fim de semana.

            - É mesmo, ouvi falar desse desastre.

            O tópico da conversa desviou-se e Cecília, intrigada, perguntava-se porque nunca antes ela havia comido morangos tão saborosos, creme de leite tão suave e pão tão crocante. Aquela refeição era um deslumbramento de odores e sabores. “Sou eu”, percebeu ela, “minhas sensações estão à flor da pele, como uma criança que experimenta pela primeira vez as delícias de estar em férias.”

            - Ah, como é bom tirar férias da própria vida! - então percebeu que havia dito essas palavras em voz alta.

            - Sua vida está assim tão difícil, amiga? - perguntou Irene.

            Gaiatamente, Cecília respondeu com uma troca.

Inácio retrucou com outra.

Cecília olhou para o rosto de Inácio e analisou a sua silhueta. Sem chegar a ser um perfil grego perfeito, tinha lá suas semelhanças. O nariz, por exemplo, embora a testa não se encaixasse nos padrões gregos. O conjunto era bonito, talvez ela pudesse mais tarde desenhar o rosto do poeta de memória. Ela distraiu-se e perdeu uma acirrada polêmica entre os trovadores, que culminou com Inácio falando algo sobre sentimentos profundos. Então, Irene provocou, citando uma trova do próprio Inácio, em que ele dizia ser a trova uma indiscreta, que conta tudo a todo mundo.

            Enquanto muitos na mesa riam a bom rir, Cecília sentiu-se incomodada com a expressão de Irene.

Inácio também observou Irene com olhos surpresos.

Nesse momento, a metade mundana de Cecília sussurrou em seu ouvido alguma coisa sobre o seu sentir mais profundo e a sua metade católica ordenou-lhe com urgência telefonar ao marido, e ela, obediente, afastou-se da mesa em direção à recepção.

            O sábado passou-se em uma correria. Cecília lembrava-se bem de ter ficado alguns minutos preciosos bem quieta e risonha ao lado de Inácio posando para as fotos. Uma felicidade inesperada brotava em seu peito, como se a fama lhe importasse mais do que gostaria de admitir. Só os dois em frente à bandeira da Associação. Só os dois de braços dados em frente a um arranjo de flores. Só os dois exibindo o estatuto assinado em cartório. Os dois juntos a sorrir no centro de todos os trovadores.

            Tudo terminado, despediram-se dos que iriam partir na manhã de domingo. Poucos ficariam para aproveitar o final do domingo.

            Cecília tagarelava sem parar em seu quarto, junto com a amiga Irene..

            - Ah, estou tão animada. Nunca pensei que organizar jogos florais, escolher juris e telefonar para prefeituras fosse tão empolgante. Quanto trabalho tenho pela frente. Ah, Irene, a vida que me aguarda daqui para a frente será diferente e bem mais interessante.

            Irene estava estranhamente quieta e não respondeu.

            - Bem, despeço-me aqui. Você vai mesmo partir antes do café?

            - Sim, Cecília, e você deveria fazer o mesmo.

            - Não, as passagens já estão compradas e eu mereço descansar um pouquinho mais. O Jurandir dará conta das crianças. O que digo?  Minha mãe é quem dará conta dos netos. Ele deve ter pedido socorro à sogra, claro. Jurandir estará mesmo enfiado no meio da papelada burocrática de algum medonho processo.

            Irene apertou-lhe as mãos com simpatia.

            - As trovas servem de descanso para a jornada diária, Cecília, e eu estou com saudades daqueles dois capetinhas, os meus gêmeos. Dê cá um abraço, amiga.

            Cecília viu a amiga sair do quarto com um aperto no peito. Ela suspirou e olhou para o telefone. Deu-lhe vontade de ouvir a voz do filho, que àquela hora já estaria dormindo. De repente o telefone tocou e ela atendeu, com a respiração paralisada.

            - Cecília, que correria, ficamos todo o sábado juntos e, no entanto, nem nos falamos, querida.

            - Inácio.

            - Que tal um passeio de pedalinho antes do café? Caso esteja disposta, claro, talvez você esteja cansada, meu Deus, que ideia boba a minha, esqueça.

            - Sim, é claro, eu encontro você às seis. No saguão do hotel. Sabe-se lá quando terei outra oportunidade dessas, não é, quero dizer, outra oportunidade de andar de pedalinho.

            - Durma bem. Bons sonhos. 

            O ambiente estava colorido de novo, as cores brilhavam nas rosas do papel de parede e ela até podia sentir o aroma de pinho da loção de barba de Inácio.

            Cecília desceu cedo, quase a correr, desejosa de tomar sol. Inácio a esperava, com a câmara na mão.

            - Quero tirar umas fotos do lago - disse ele.

            - Ah, eu não trouxe máquina.

- Não seja por isso, eu tiro. Depois lhe envio pelo correio. Vamos mesmo nos corresponder e muito, Cecília.

            - É mesmo - de repente ela sentiu-se acanhada.

            Caminharam vagarosamente pelas alamedas floridas, sem falar.

            Cecília arriscou um comentário neutro:

            - O que esperar de nossa associação, quero dizer, nem todo poeta considera que a trova seja um gênero importante de poesia.

            Inácio retrucou:

- Como diz o nosso talentoso Antonio Augusto de Assis:

            Trova é bom para a saúde,

faz amigos, dá prazer.

Talvez até nos ajude

a esquecer de envelhecer…

Sorriram. Chegavam à beira do lago e Inácio ofereceu a mão à Cecília. Ela pegou-lhe nos dedos, a suspirar, e ficou silenciosa. Ele também. Os peixes podiam ser vistos abaixo, nas águas claras. Os pássaros chilreavam num alarido matinal.

Seguiu-se um diálogo todo em trovas, em que cada um falava a outro sobre seus sentimentos mais preciosos.

Ela começou comentando que uma trova não consegue traduzir a riqueza dos sentimentos do poeta.

Ela retrucou que quando se sentia angustiada, a poesia entrava pela janela da alma.

Ele retrucou com outros versos em que dizia que marcava encontro consigo mesmo na solidão para consolar-se com as incertezas da vida.

Então ela falou de seus filhos em uma trova e ele respondeu com outra trova que fizera para seus meninos.

            Ela, então, completou:

            - Filhos são sempre fontes de inspiração, não é mesmo, comecei a escrever poesia por conta do meu pequeno, em uma noite de vigília. - e recitou essa primeira trova.

            A manhã havia começado animada e agora estavam ambos calados.

            - Vamos ao café - propôs ele.

            Entrando no salão encontraram alguns trovadores retardatários preparando-se para partir.

            Foram saindo um a um, ficaram na mesa apenas Inácio e Cecília.

            Meia hora depois estavam com as contas do hotel quitadas, o táxi programado para a estação e as malas guardadas em lugar apropriado.

            Eles então partiram para um último passeio.

            - Você é cristã, Cecília?

            - Como você. Por que pergunta?

            - Sabe, algumas pessoas me questionaram porque a Associação é católica. O Albino Franco, por exemplo, parece que alguém andou comentando sobre Francisco de Assis ser o padroeiro dos trovadores.

            - Não é proibido que um cristão seja poeta. A poesia alegra esse mundo de Deus.

            - Seja como for, esse pequeno mal-entendido foi corrigido, todos são bem-vindos, sejam de qual religião forem.

Cecília então contou:

            - Quando eu me casei, apenas lia muito, comecei a escrever depois. Estranho, não é? A maior parte dos escritores escreve desde muito cedo. Quando você descobriu sua vocação?

            - A de dentista? Ou a de poeta?

            - A de poeta, é claro.

            - Bem, eu sempre me vi com todas essas imagens, sons e rimas dentro de mim. Foi quase um choque saber que para algumas pessoas era diferente. - e prosseguiu, mudando de assunto - Teremos muito trabalho pela frente, mas com sua ajuda acho que a Associação dará conta.

            - Claro que sim. Eu me vejo como uma vencedora. Uma pessoa que busca soluções.

            - Exatamente a parceira que eu preciso nesta empreitada. Uma pessoa forte que não foge do sucesso.

Estavam de novo serenos e Inácio começou a falar de sua juventude:

            - Conheci minha esposa bem jovem. Para dizer a verdade, éramos vizinhos. Quando me vi na idade de casar pareceu a coisa certa a fazer. Quero dizer, pedir a mão dela em casamento. Vivemos felizes até hoje. - disse ele

- Pois eu nem pensava em me casar, eu estava muito bem com meus pais, mas as amigas de repente pareceram estar tomadas por uma epidemia, todas noivando e casando. De repente eu me senti muito solitária. Eu acho que no fundo eu queria ser mãe.

Ele sorriu com tristeza e comentou:

            - Bem, você não deu nenhuma razão coerente para seu casamento.

            - Não houve razão coerente. Oh, falando assim meu casamento parece ter sido uma atitude insensata e leviana.

            - Todos fazemos isso. A mais importante decisão de uma vida é tomada assim, nem se sabe ao certo o porquê.

            - Voltemos ao hotel, temos de almoçar antes de voltarmos para casa.

            - Lembra o ditado popular “quem pensa não casa, quem casa não pensa”?

Assim foram discursando, sobre porque fazemos o que fazemos e se essas razões são mesmo as verdadeiras, se seguimos a moda, os hormônios, ou a emoção do momento…

            O almoço foi alegre. Tomaram um vinho, riram muito e descobriram que tinham um senso de humor um tanto irreverente e fora do comum.

Daí passaram a fazer desafios. Um sugeria o tema, o outro criava a trova.

Até o momento em que Cecília falou de um casal unido pelas afinidades e apartado pela distância.

De repente fez-se silêncio entre ambos e ficaram muito ocupados em consultar o relógio, pedir a conta e partir.

            No trem, como estivessem cansados, um pouco pelo vinho, outro tanto pelo calor, quase sem sentir, adormeceram. Inácio escorregou e foi declinando a cabeça no colo dela. Cecília em algum momento acordou. Estava debruçada por sobre o ombro dele, tinham as mãos entrelaçadas e tudo lhe pareceu bastante natural.

Ela tentou sair daquele abraço, sem acordar o companheiro. A mão dele procurou o ombro dela e abraçou-a, a suspirar. Ela adormeceu novamente, agradavelmente embalado pelo calor dos braços dele.

            - Cecília - ele murmurou, sacudindo-a de leve. - Cecília, me desculpe, eu acho que adormeci.

            Apenas acordados, retomaram a conversa interrompida.

            - Quais os seus autores prediletos?

            Três horas depois ainda estavam a trocar ideias sobre livros e autores e poemas.

            A viagem chegava ao fim.

            Desembarcaram. Pegaram as malas.

Um tanto agastada pela longa jornada, a estação pareceu para Cecíli cinzenta e feia. Os cheiros de fumaça, de pó, de fim de dia, juntos lhe provocavam náusea. A sua pele estava seca, os cabelos grudentos.

- Cecília.

            Inácio a olhava. Fixo. Um olhar que lhe trespassava a alma. Ela olhou para ele e se deu conta de que era uma despedida.

Então ele a beijou na testa e exclamou:

            - Ah, que Deus nos ajude, querida, o que é que vamos fazer?

            - Inácio.

            Ele virou-se e partiu quase a correr, sem olhar para trás.

            Ao redor dela tudo pareceu desaparecer - os trens, as pessoas, os gritos, os cheiros, as imagens..

            Ela ficou plantada na estação, completamente desperta, como se só agora se desse conta das coisas que realmente tinham importância. 


Conto escrito por
Sonia Re Rocha Rodrigues

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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