O DESBRAVADOR DE IDENTIDADES - CAPÍTULO 10
Marcos se enrola todo
e acaba não dizendo nada aproveitável. Alegando estar passando mal, retira-se,
para a estranheza de Ricardo, que se volta para a mulher.
_ O que houve
com ele?
_Meu querido,
ele entrou no CTI para ver como estava meu filho e voltou deste jeito,
completamente perturbado. Será que meu menino morreu e ele não me quer contar?
Que dor a minha!
A enfermeira
abre a porta.
_Cadê o rapaz
que estava aqui?
_O que houve com
meu filho? Ele morreu? – adianta-se.
_O que a senhora
quer com ele?- pergunta Ricardo. _ Sou o patrão dele.
_Posso conversar
com o senhor a sós?
_E meu filho? –
insiste a mãe.
_ Se isso acalma
seu coração, ele está lutando...
_Oh, graças a
Deus!
_Venha comigo,
senhor! – pede a enfermeira ao filho de Leonardo.
A uma distância
considerável da mãe da criatura, a enfermeira revela:
_ O que
pretendia seu funcionário? Se eu não chegasse a tempo, ele teria posto fim à
vida do filho daquela mulher.
_Não estou
entendendo!
_Ele estava
pronto para desligar o respirador do rapaz, isso é assassinato, devo comunicar
o fato aos meus superiores.
_ Não! Não! Deve
haver algum engano! Eles não se conhecem e, mesmo que se conhecessem, por que
faria isso?
_Estas respostas
ele prestará à polícia.
_Não faça isso, por
favor! Deve haver algum mal-entendido, mas não envolva a polícia. Vou conversar
com ele, saber o que houve e, a depender do que me disser, será demitido. É uma
pobre alma, sem família, que trabalha para meus pais há décadas, sei como
tratar com ele. Por favor, dê-me essa chance, eu peço!
A mulher é convencida
depois de muita insistência.
Atordoado, o chofer
tecla o 8º andar ao invés do térreo e se enfurece, a ponto de esmurrar o painel
do elevador.
_ Quero sair daqui já!
Que droga! – as imagens do rapaz ainda saudável se contrastam com as do doente
que agora jaz naquela maca. _Não é possível! Pare! Pare, eu já disse! – diz,
comprimindo a cabeça com as mãos - ... Meu filho salvava vidas... –
as palavras da mulher permanecem a amedrontá-lo a ponto de ele tapar
os ouvidos, na intenção de cessá-las. São como chicotes nas mãos dos feitores
do tempo. _ Pare! Pare, desgraça! Pare! É... ele salvava
vidas e nada fiz para impedir que fosse exposto a tanta dor. Marcos,
Marcos, onde estava com a cabeça?- pergunta a si mesmo. _Eu estava tão cego
pelas palavras de seu Leonardo que não percebia nada além de seu olhar
carregado de cinismo e deboche. Fui mais uma peça manipulada em seu tabuleiro
da maldade. Não! Não!
O remorso o corrói sem
piedade.
_ Eu o considerava um
demônio, assim como o patrão, a quem, infelizmente, ainda devo muito
favores. Mas nada justifica minha cegueira.
Chega ao oitavo andar.
Fora de si, com a visão turva, tenta teclar outro piso, como não consegue,
volta a esmurrar o painel, que entra em curto.
_Que droga!!! O que
está acontecendo comigo? Ele é um monstro, a mulher mesmo disse de e-mails e
fotos, devem ser de seu Ricardo e Anna, mas como ele faria tal maldade a ambos
se o mundo conspira contra sua existência? Estou delirando! Ele, nem que
quisesse, poderia fazer mal aos Médici...Minha cabeça está rodando! Preciso
respirar. Monstro...demônio... anjo...salvador...que inferno! Por que fui me envolver nisso? – dá uns dois ou
três tapas na própria cabeça. _ O que foi que eu fiz?
Sai do elevador, toma
fôlego, olha para o alto, fecha os olhos, as memórias continuam a atormentá-lo;
abre-os, inspira demoradamente e limpa o suor, que lhe escorre por toda a face.
Solta-se pelo corredor e, como alma penada, passa pelos vários leitos e suas
histórias de dor, sem que sua presença se faça percebida.
Perturbado, o homem
continua sua viagem pelas entranhas ardentes daquele lugar, e a cada passo dado
é como se envelhecesse, perdendo-se no tempo e nas ações.
_Meu filho salvava
vidas... – A voz da mulher persistia, como uma obsessão, para seu
desatino._ Pare de falar, criatura! Saia da minha cabeça – estapeia-se. _Pare!
Ele não é esse anjo de que está falando, não poupou esforços para acabar com os
Médici, lembro-me muito bem! Pare! – grita.
_ O que há,
senhor? - pergunta um jovem ao vê-lo se contorcendo. _ Está passando
mal?
_ Ele salvava vidas?
Não! Só porque tirou um bebê do lamaçal não quer dizer que seja um santo; ele
arruinou esta família, que também é minha, não de sangue, mas por consideração.
_Do que o senhor está
falando? – pergunta o moço.
_Me deixe em paz...-
grita, dando-lhe as costas.
Cansado, para diante
de um bebedouro, serve-se de um copo, enche-o até o meio e o beberica. Trêmulo,
deixa um fio de água escapar pelos cantos da boca, molhando a fina camisa de
algodão. Passa a mão pelo molhado, é quando percebe que tem de voltar, seu
Ricardo está à sua procura, certamente.
Joga o copo no cesto,
quando uma profunda canção, saída de um daqueles quartos o atrai. Como uma
estaca, a música lhe atinge o coração e o esfacela; tem vontade de chorar, mas
confuso como estava, nem uma lágrima derrama. E ali permanece a ouvi-la, cujas
notas ascendem-no ao estágio-mor da inércia.
Esquece-se, por
instantes, da família Médici, e sai à procura do aposento de onde ecoa a
intrigante melodia que lhe oscula a alma na forma de um arrepio.
Sem perceber, adentra
outra ala. Há crianças por todos os lados, mulheres implorando a Deus por
salvação, enfermeiros em correria, médicos estressados...
Mesmo angustiado, prossegue, quer saber de onde
vem aquela música e o porquê de mexer tanto consigo.
Para diante de um
leito em que está uma criança, com as forças em vias de extinção. E é de lá que
se origina a canção.
Uma brisa fria desce
do céu, invade o corredor, toca-lhe os cabelos, acaricia-lhe a face. A sensação
de perda é inquietante! Marcos chora ao ver o menino partir.
Uma jovem de uns vinte
e poucos anos desespera-se. Ao lado dela, uma senhora, com um terço entre os
dedos, ora em sussurros. Na outra ponta do quarto, um garotinho, talvez o
irmão, agarrado à perna do possível pai, acompanha tudo sem entender o que
acontece e, na cabeceira da cama, um pequeno aparelho toca repetidamente a
canção que a ele hipnotizou.
Os olhos da mulher, possivelmente a mãe, de um
vermelho sangue, encontram-se aos do chofer, que sem poder ajudar, afasta-se
devagar. Sem saber o que fazer, fecha os olhos e tem à frente a imagem de
um Gabriel morrendo, lá naquele casebre onde Deus escondeu do mundo.
_Santo Deus! O remédio
dos pacientes...– grita a enfermeira, ao derrubar a bandeja, após esbarrar no
serviçal, que parecia penar pelo corredor, tal o desatino.
_Sinto muito! – diz
Marcos, libertando-se do transe em que estava imergido.
_ Se minha chefe vir
isso, levarei uma bronca.
_Mas não foi sua
culpa; foi minha! Não sei o que deu em mim. Sinto muito! Foi essa música que
mexeu comigo, estou meio perdido, por instantes é como se eu não estivesse mais
aqui...não consigo explicar... - confessa à funcionária, ajudando a recolher os
medicamentos.
_ Gabriel gostava
muito de ouvi-la.
_Como? O menino se
chamava Gabriel? – arrepia-se o motorista. _ Não pode ser!
_ Sim! O pobre
menino a ouvia todos os dias, sempre no mesmo horário. E hoje as notas musicais
tocaram pela última vez, anunciando sua partida.
_E que música é essa?
_”A way of life”, de
Hans Zimmer – responde o pai, passando pelo local, com a cabeça baixa.
_ Isso mesmo! Tem uma
melodia...
Marcos não termina de
ouvir a enfermeira, volta-se para o elevador, quando se lembra que ele está
parado, então segue para a escadaria. Desce os oito andares num pulo, quer logo
sair dali, aquele lugar mexeu muito com sua razão.
_Marcos! – grita Ricardo
ao vê-lo. _ O que você pretendia aprontar? A enfermeira me disse tudo, por
pouco não foi parar atrás das grades. Fale, homem! O que pretendia? Você
conhece aquele rapaz? E de onde?
O chofer não se segura
e chora na frente do filho do patrão, que não compreende.
_Ei, o que há?
_...Ele salvava vidas,
seu Ricardo, nunca parei para pensar nisso!
_Quem salvava vidas?
_Ele...ele...ele
salvava.
O jovem não entende.
_Sente-se aí e se
acalme! Do jeito como a coisa anda, daqui a pouco estaremos todos loucos.
_Jacira – liga para a
empregada, assim que o rapaz se retira-, me ajude!
_O que cê qué? Não tô
muito boa hoje não! Enquanto vocês andam de carro no bem bom, eu tenho de ralar
de buzão, até de Gretchen da periferia fui chamada por um pingaiada, acredita?
Só não lhe quebrei os dentes porque o cobrador entrou na frente. Ainda se me
comparasse com a Betty Faria, a Suzana Vieira, a Lucinha Lins vá lá, mas com a
“Conga la Conga”, é demais para a minha beleza...
_...me ouça, por
favor! – interrompe-a, aflito.
_ Marcos, o que há,
meu filho? – muda o tom de voz, percebendo que o caso era grave._ O qui cê tem?
Aconteceu algo ao meu moleque ou...ou ao seu Leonardo? Vixi Maria! Fale logo,
tô ficando agoniada!
_Ele salvava vidas!!!
_Quem salvava vidas???
_ O senhor dos
infernos!!! Ele não era o monstro que imaginávamos!!!
_Eu, hein? Tá
possuído? Ele acabou com toda a alegria da residência de nossos patrões e você
diz que ele salvava vidas? Devia salvar a vida dos machos que carregava para os
motéis.
_Não! Ele salvava
gente inocente, criança...
_Com quem está
conversando? – pergunta Ricardo, achegando-se com um copo de chá.
_Nã...nã...ninguém!
Ninguém! – desliga.
_Que doideira é essa
que o Marcos falou? Aquele sujeito nunca poupou esforços para levar dona Nathalia
às lágrimas nem se preocupou com a sorte de seu Leonardo. Bonito feito uma
peste, enfeitiçava homens ingênuos como o patrão e os levava a virar a casaca,
cair na perdição; acho que devia mexer com macumba, porque eles pareciam cães
atiçados atrás dele e agora me vem o Marcos com essa conversinha fiada. Tô
fora, Suzicreide! Ele que levante asas para o meu moleque, dou-lhe uma cacetada
de moer os ossos. Exprimente pra vê!
As horas passam...
_Cadê meu moleque? –
pergunta ao segurança. _ Moleque! Moleque!! Moleque!!! – grita, sem noção, ao
adentrar o hospital.
_A senhora não pode
gritar aqui!!!
_ Nem as autoridades
me impedem de achar meu moleque.
_Jacira, estou aqui! –
acena-lhe o jovem, na sala de espera.
_Ali está meu moleque,
sai da frente, não estou acostumada a falar duas vezes.
_Grossa! – sussurra o
homem, sendo ouvido por ela.
_O senhor quer sentir
o peso da minha mão? – volta-se para ele-._ Pois lave muito bem esta boca de
caçapa antes de falar de mim; sou funcionária dos Médici há anos e exijo respeito,
tá ouvindo?
_Venha, Jacira! Deixe
de encrenca! – pede Ricardo.
_Você tá bem? E o
Marcos, onde está? – percebendo a ausência do chofer._ Já sei,
nem precisa responder, na certa tá passando alguma informação pra alguém,
porque o bicho é rato, está em todo lugar e só fala da vida dos outros. Só não
presta pra trabalhar, se fosse meu funcionário, já estaria na rua, mas vocês
aceitam qualquer coisa. Hum!
_ Pare com isso,
Jacira! – diz, dando-lhe um abraço. _ Ele está no carro. Mas me diga, por que
veio aqui a esta hora?
_Para...para...bem,
queria sabê como cê tava... Me preocupo muito com você, moleque, apesar de
achá-lo muito fresco às vezes, mas nada que não se cure com umas boas palmadas.
Mas, vamos deixá de lado essa conversa de amigos de boteco para tratar do que
realmente interessa: o que tem o Marcos? Ele estava com uns papos estranhos no
telefone.
_Então ele te falou?
_Falô o quê? Pois
conte tudo, não me esconda nada! Vamos! Vamos! Como odeio mistérios.
_Ele quase matou um
homem.
_Cruzes! De chofer a
assassino, que decadência. Mas quem lhe contou essa mentira? A gente sabe que o
bicho não é muito certo das ideias, daí a matar uma pessoa, só se tivesse
possuído, o que não duvido, porque aquele lá é igual pai de santo, baixa em
tudo que é terreiro.
_Não entendi nada! Mas
consegui convencer a enfermeira a não o denunciar, visto que o rapaz ainda está
vivo.
Jacira imediatamente
associa a vítima à figura do ex-amante de Leonardo e muda de expressão.
_ E quem ele tentou
mandar dessa para melhor?
O telefone toca,
Ricardo se afasta. Aproveitando a oportunidade, ela vai até o estacionamento,
onde encontra o chofer desolado.
_O que acontece, meu
filho? Cansou de ser motorista de gente grã-fina para tentar a carreira de
assassino?
_Me deixe em paz, Jacira,
não estou bem.
_Problema é seu! É bom
soltar o verbo antes que eu mesma resolva denunciá-lo, porque se não fosse o
moleque, você estaria no xadrez a esta hora.
_Jacira, o cara não
pode ser o demônio que nos pintaram.
_ Vai me dizer que
acreditou em alguma história da carochinha que lhe contaram. Não se lembra, ele
invadiu a mansão e só não agrediu dona Nathalia porque não deixamos. A mulher
perdeu até a cor. Coitada! Que Deus a tenha! Aliás, me tire uma dúvida, meu
filho, o tal não era rico, vivia amoitado na grana de seu Leonardo, então, de
onde tiraria a grana para bancar o luxo deste lugar? Ah não! Não vá me dizer
que...
Marcos balança a
cabeça.
_Suzicreide do céu! –
leva a mão à boca.
Batem no vidro do
carro.
_Não temos dinheiro! –
diz o motorista, ignorando.
_Largue de ser burro,
é aquele segurança metido à besta. Pois veja o que ele quer...
_Corram! O senhor
Médici está num choro só!
_MEU MOLEQUE??? OXI!!!
O QUE TERÁ ACONTECIDO??? SERÁ QUE SEU LEONARDO BATEU AS BOTAS? -
pergunta em meio à afobação, dirigindo-se com o chofer à sala de espera. _ O
QUE ACONTECEU COM VOCÊ? FALE, MEU FILHO!
Ricardo está
inconsolável.
Marcos aponta para o
celular dele, que está ao lado. A empregada o pega e leva um susto que quase a
derruba.
_A FUNALINHA DA ANNA
MORREU??? OXI! COMO ASSIM?
_Vixe! E pelo que
dizem aqui nesta mensagem, foi de acidente, na marginal. Sangue de Jesus tem
poder! – diz, Marcos, voltando– volta-se para Ricardo. _ É ela que estava
naquele carro, quando passamos, patrãozinho! Como o mundo é pequeno! – comenta,
agora com o celular em mãos. _Deve não ter aguentado o baque de que o senhor é
gay! Ops, desculpe, foi sem querer! – dá um sorrisinho amarelo.
_ Você já melhorou,
né, peste dos infernos? – pergunta Jacira, fulminando-o com olhos de uma mãe
indignada.
_Deixem-no! –
determina Márcia, ao adentrar a sala de espera. _ Ele precisa de cuidados
especializados.
_ Essa bicha de novo não?
Que vontade de dar um murro na cara dela! – sussurra Jacira, cerrando os
punhos.
Encerra com a música (A Infinita Jornada da Alma -
Marcus Viana).
elenco
trilha sonora
Bring Me To Life - Evanescence (abertura)
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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