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Antologia O Mal que nos Habita - 2x05

Conto de Leo de Sá Fernandes
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Sinopse: Só mesmo nos comerciais de margarina as famílias são perfeitas - na realidade, podem estar mais próximas de uma história de terror do que se possa imaginar. Em "Filipinho", acompanhamos a saga deste narrador que, vivendo as dores e delícias de ser filho único, descobre que seu amigo imaginário - eco do irmão que sempre desejou, mas nunca teve - pode na verdade ser um fantasma de um passado que seus pais tentam a todo custo esconder. 

2x05 - Filipinho
de Leo de Sá Fernandes

Pensando bem, minha mãe sempre foi uma pessoa assustada. Mesmo nas situações mais cotidianas, exercia o seu espanto com os menores incômodos, como se estivesse sempre à espreita da tragédia iminente, com medo de que algo fosse revelado. O que, agora, faz até certo sentido. Mas além de uma pessoa assustada, mamãe sempre foi também muito bem humorada. A história de Filipinho, por exemplo, ela contava sem medo de me traumatizar: toda vez que saíamos em viagem para o interior, em prazerosos finais de semana nos hotéis fazenda do Vale do Paraíba, ela insistia em trazer Filipinho à tona. Meu pai não gostava: mas também não fazia objeções, até ria, enquanto acendia um cigarro.  

Amava estes finais de semana, em que voltava da escola na sexta-feira e esperava ansiosamente a chegada da noite, enquanto nós, mamãe e eu, arrumávamos a mala. Depois, mais tarde, papai chegava do trabalho, jantávamos e partíamos rumo ao interior: o final de semana inteiro na piscina, eu passaria, ou andando a cavalo, jogando ping-pong com meu pai ou com as outras crianças hospedadas. De cada viagem eu voltava com um amigo, um amiguinho novo, que eu quase nunca tornava a ver depois. A solidão do filho único te torna sempre ávido por companhias. Enfim, o fato é que eram finais de semana tão gostosos que guardo comigo a primeira vez em que entendi o significado da palavra melancolia, ao final de uma dessa viagens, em que nosso carro adentrou o trânsito da Marginal Tietê na luz azul profundo de um final de domingo. A volta e a lembrança das sobremesas e dos jantares era sempre uma tristeza a mais. 

"Pena que o Filipinho não está aqui conosco", dizia minha mãe em tom de brincadeira, o sorriso nos lábios, o carro adentrando a rodovia. Era nosso jogo, eu já sabia, e respondia: "Ah, mãe... Nem vem...”. Filipinho era o nome de um porquinho-da-índia que tiveram em casa meus pais quando eu nem era nascido. Era o que minha mãe contava. E em algum momento das nossas brincadeiras, eu inventei para eles que na verdade Filipinho era o nome do meu irmãozinho, aquele que eu nunca tinha tido, coisa de filho único carente. O medo pelo irmão sumido tornou-se piada sobre o modo como minha mãe havia preparado o porquinho — que na verdade era um porco grande — para ser servido num jantar de Natal: a gente gargalhava ao dizer que ela havia assado o Filipinho com uma maçã na boca! Meu pai, que era vegetariano apesar de fumante, não via graça na brincadeira e se resignava a dizer, ao volante, os olhos fixos na estrada: “meu Deus, quanta bobagem!”

Mamãe gostava de assustar. Vez ou outra, a caminho do hotel, na escuridão da sexta-feira, ela mandava meu pai parar diante de um casebre qualquer no meio da estrada, me olhava com olhos profundos e dizia: “é aqui, filho, é aqui que mora sua verdadeira mãe”. No começo eu achava que era verdade, e pedia em prantos que ela parasse, mas com o passar dos anos compreendi o humor macabro de mamãe e passei a aceitá-lo. Não era de todo ruim, afinal! "Ah, que saudade do Filipinho" eu mesmo passei a dizer quando estava na piscina de um hotel fazenda em Águas de Lindóia, o Hotel Zanon, enquanto minha mãe tirava fotos com a máquina que papai havia trazido do Japão. Aquela vez em Águas de Lindoia foi a melhor: o Hotel Zanon parecia um mini resort com duas quadras de tênis, salão de jogos, duas salas de jantar e um frigobar lotado com bombons de whisky e água Perrier. Voltamos pra São Paulo, eu no banco de trás, quentinho, os cabelos ainda molhados do último mergulho. 

***

Alguns dias depois, no mesmo banco de trás, passei com mamãe depois da escola na loja de filmes pra pegar as fotos da viagem. Mamãe entrou no carro, ligou o motor, abriu a embalagem das fotografias, passou uma, duas, comentou qualquer coisa e deu um grito. Atirou contra a janela fechada o bolo de fotos. Caíram todas. Em seu colo. 

Olhei assustado e ela me ordenou: “não saia do carro”. Bateu a porta e entrou nervosa na loja de fotos. Eu permaneci assustado, a lancheira no colo, e de repente tive medo pela primeira vez. Um medo da minha mãe me esquecer ali, e nunca mais voltar. Passei os minutos seguintes, longos como uma eternidade, olhando aflito o mundo de fora através da janela do carro. A rua parecia um deserto de zumbis esparsos depois do almoço. O carro era um forte, mas mamãe estava do lado de fora, desprotegida! 

A sensação de isolamento me acometeu de tal forma que me vi sufocando ali dentro. Pulei para o banco da frente, levantei o pino da porta e abri o carro: na correria do seu nervoso, mamãe havia derrubado uma das fotos no chão. Aquilo me distraiu. Mamãe não voltava. Abaixei e peguei a foto: sorrindo ao ver de relance a piscina, lembrei do Hotel Zanon com saudades. Mas também não pude conter o susto: na imagem, atrás do meu pequeno corpo sorridente e molhado no meio daquela água toda, parado, de pé, havia um outro menino. Cinzento, frio, também molhado, como se sua pele fosse desbotada pela ação do tempo. Mais alto que eu, calado, os lábios tensos em contraste com meu sorriso aberto na foto. Era um fantasma.

Mamãe arrancou a foto das minhas mãos no instante em que me flagrou fora do carro. Pediu que eu fosse para o banco de trás. Resignado, eu fui. Intrigado, permaneci. Naquela noite, ela e papai se trancaram no quarto. Pude ouvir a discussão que se aquecia e que se arrefecia: decerto, quando um acalorava a fala, o outro lembrava que deveriam falar baixo para que eu não ouvisse. É claro que os sinais surgiam, ali, mas eu me recusava a enxergar qualquer tipo de obviedade, e quis crer que, se eles falavam mais baixo, era pra me proteger. Nos dias que se seguiram, fiz minha lancheira sozinho, arrumei minha mochila, e esperei a perua escolar no portão, do lado de fora, porque minha mãe simplesmente mal conseguia levantar da cama. 

***

Naquela manhã chovia, e papai resolveu me levar. Eu estava pronto, arrumado, e, no banco de trás, observava a chuva do lado de fora. Papai me olhava pelo retrovisor. Abriu um pouco a janela pra fumar, mesmo na chuva. Ele sabia que eu sabia que minha mãe não gostava que ele fumasse no carro. Peguei de relance o seu sorriso. “Sua mãe está vendo fantasmas, meu filho. Ela pensa ter visto um fantasma em uma foto”. E, em seguida, dirigiu seu olhar para a frente. Pensei em retrucar, dizer que não, que eu também tinha visto a foto e que na foto tinha mesmo um menino atrás de mim, um menino que não existia, que não estava hospedado no hotel conosco, seria impossível, eu saberia, a piscina estava vazia naquele dia, eu tinha certeza, eu tinha visto, era um menino pálido, levemente mais velho que eu, e triste, muito triste, com olhos vazios de tristeza. Não tive coragem de dizer mais nada, mas ainda assim meu pai voltou a me olhar pelo retrovisor e dizer: “essa foto não existe”. Uns dias depois, entretanto, enquanto eu levava café da manhã para a minha mãe no quarto, meu pai já tinha saído para trabalhar, minha mãe ainda dormia de janelas fechadas, e eu encontrei em sua mão, levemente amassada, a imagem agarrada por ela, com a qual ela deveria ter dormido junto. Hesitei em tirá-la de sua mão mas, mesmo à distância, na penumbra, eu pude distinguir a imagem do menino triste. E desde então, me convenci de que meus pais tinham algum segredo. 

***

Não dou satisfação nenhuma da minha vida para eles. Quando volto das raves, ainda louco de bala, frito de doce, encontro os dois tomando aquela sopa rala na sala de jantar, me esperando de madrugada, fazendo barulho. Minha mãe, como sempre, fica assustada: leva um susto toda vez que me vê, e em seguida diz um “valha-me Deus”, porque sempre faz questão de registrar seu incômodo com o modo como me visto, com meu corte de cabelo, meus piercings, minhas tatuagens. Depois do seu período depressivo, ela deu pra ser crente por um tempo: começou a ir à igreja com uma vizinha nossa, vivia pra cima e pra baixo com uma Bíblia, falando de Deus, etc. Não durou muito tempo, porque apesar de assustada, ela seguia sendo bem humorada e não gostavam do seu humor por lá. Meu pai, por sua vez, seguia sua vida em silêncio, tomando sua sopa, e de vez em quando emitia aquele mesmo sorriso que me emitiu no banco de trás do carro, naquele dia chuvoso. Durante a minha adolescência, todas as vezes em que a gente discutia e eu levantava o assunto daquela foto, eles insistiam em dizer que aquela foto não existia. “Mas eu vi!”, argumentava, e eles respondiam que eu era muito criança, que tinha visto errado. Por um bom tempo, cheguei a duvidar de mim mesmo.

Até que meu pai pegou uma pneumonia, e tivemos um imbróglio com o convênio, e para isso eu precisei levantar seus documentos, e entre eles sua certidão de nascimento, e na certidão vi que meu pai tinha nascido em Vitória, no Espírito Santo. Achei estranho. Para todos os efeitos, meu pai era nascido em São Paulo. Movido por uma intuição perturbadora, talvez dando vazão a um sentimento que me acompanhara a vida inteira, resolvi verificar a certidão de minha mãe sem antes consultar meu pai sobre esse caso dele ter nascido no Espírito Santo. E, sem muita surpresa, mas com algum espanto, descobri que minha mãe também não era nascida em São Paulo, mas, como meu pai, em Vitória. Seria muita coincidência que eles, tendo nascido na mesma cidade, tivessem se conhecido somente por aqui. De modo que, sem muitas delongas, concluí que eles tinham mesmo vivido uma vida em Vitória juntos antes de vir para cá. Uma vida sobre a qual eu nada sabia, sobre a qual eles jamais haviam me contado. 

Não pude, desde então, olhá-los com os mesmos olhos de sempre. O que escondiam aquele casal de 60 anos, dando as mãos um para o outro naquele quarto de hospital no qual meu pai se recuperava da pneumonia? Minha mãe encasquetou que era câncer. Meu pai tinha fumado a vida inteira. E assustada como sempre foi, passou a prever o pior. Mas eu sabia que não podia entrar na loucura dela, e resolvi sair pra uma festinha mesmo com meu pai no hospital, esperando os exames. Não me sinto um filho ingrato, nem um pouquinho. Mas acho que faço essas coisas para atingi-los. Quando voltei, um pouco mais cedo que o habitual, flagrei minha mãe ajoelhada no meio da sala, rezando, uma vela acesa na mesa, as mãos em sinal de oração. Mesmo durante o tempo em que ela fora crente, eu nunca a tinha visto rezando daquele jeito. Me aproximei sem que ela percebesse, e vi que próximo a vela estava a foto: a imagem da  piscina, e eu lá, criança, pulando, sorridente, e atrás de mim o menino triste e cinzento. O fantasminha. De quem ou de que, afinal? Durante todos esses anos, impedido pela condição de criança, de filho, não quis revolver o passado, nem podia, e aceitei acreditar na mentira de que aquela foto não existia, e que não havia aquela criança triste no passado da minha família. Quando percebeu minha presença, minha mãe levou um susto, como sempre, mas dessa vez não falou nada sobre minha aparência, meus piercings, simplesmente levou as mãos à boca e, em seguida, me disse qualquer coisa como: “você não entende... você não entende nada... ele está assombrando seu pai...”. 

Quem, mãe, quem está assombrando meu pai?

Filipinho...

E pude ler em seus olhos que Filipinho era real, e era mesmo aquela criança da imagem em frente da qual ela ainda há pouco rezava. Pedi que ela se explicasse, que ela me contasse de uma vez por todas do que se tratava tudo aquilo, todo aquele mistério. Ela se recusou a contar, permanecendo em silêncio. 

Eu sei que você e meu pai são do Espírito Santo!

Ela me observou, mexeu a boca, hesitando, ia perguntar, mas em seguida se calou. Tornei a perguntar sobre a história, e ela continuou quieta. Peguei a velha maldita pelos ombros e chacoalhei com força pra ver se ela desembuchava, mas ela gritou comigo, disse que eu a  estava  agredindo, levantou-se, correu e se trancou no quarto. Pude ouvir seu choro maldito durante boa parte da noite, enquanto eu alisava a imagem, eu e meu irmão, Filipinho, o fantasminha triste. 

***

Na manhã seguinte, fomos informados de que meu pai teria alta. Minha mãe deu graças a Deus. Eu me dispus a buscá-lo, enquanto ela preparava um almoço de recepção para o velho. No retorno, ele no banco de trás, e eu no banco da frente, do mesmo modo que há anos atrás, mas em posições trocadas. Olhei para o velho através do retrovisor, enquanto ele olhava para a paisagem corrida nas ruas. Com um pouco de raiva na voz, joguei o verde no seu colo:

— Minha mãe me contou tudo sobre Filipinho... 

O velho me olhou, inicialmente assustado, e depois sorriu. Ele sempre fazia isso. Em seguida, voltou a olhar para o lado de fora do carro, simplesmente sem se dignar a me dirigir a palavra. 

  — Ontem ela estava rezando para a foto dele. Aquela foto, pai, que durante todos esses anos você disse que não existia. Ela dizia que Filipinho estava te assombrando, assombrando a nossa família, e que por isso você tinha esse câncer aí, que na verdade você nem tem. E além do mais... Eu sei que vocês não são de São Paulo... Eu pressionei a velha, e ela me contou tudo. 

Meu pai voltou a me olhar pelo espelho retrovisor, mas dessa vez não sorriu. Pediu que eu parasse o carro, e quis sair. Disse que estava tendo uma falta de ar. Fui atrás dele e insisti que eu já sabia da verdade, que não adiantava mais me esconder nada. Que era melhor ele assumir o que tinha feito com Filipinho. 

— Mas não fui eu, meu filho, foi sua mãe...! Foi ela quem fez, eu fui só o cúmplice... 

E à medida que as palavras iam saindo da sua boca, apesar de previsíveis, tornavam-se um atestado para o meu horror em ouvir sua confissão, a inesperada, aquela pela qual eu sempre esperei mas para a qual nunca estive pronto. 

— Eu e sua mãe, a gente era muito jovem, e muito pobre em Vitória... Foi uma gravidez indesejada, entende? A gente nunca soube lidar bem com ele, essa é a verdade. E à medida em que Filipinho cresceu, ele se tornou agressivo, era uma criança perturbada. Surtava, ficava violento. Mas a verdade, meu filho, a única verdade é que nós nunca conseguimos amar seu irmão, não como nós sempre amamos você... Você foi nosso filho desejado, ele não. 

Não era possível. Meu pai ainda tentava me jogar contra o meu irmão, meu próprio irmão! Aquele que eu nunca tivera a possibilidade de conhecer. Era muita canalhice. Olhava para aquele velho decrépito na minha frente, aquele homem que tantas e tantas vezes havia me dado lições de moral sobre a vida, e mal podia acreditar em tamanha perversidade desavergonhada. 

— Como vocês mataram ele?

— Eu não sei direito, já te disse, foi ela... Bem... Foi afogado. Na piscina de 1000 litros que a gente tinha no quintal de casa...

Então tudo estava explicado. A aparição de Filipinho na foto, no lugar onde eu me divertia, e que havia sido a cena do suplício de meu irmão. Pobre irmão solitário, afogado pela própria mãe. Me desculpa, meu irmão, se eu tivesse nascido antes, se eu estivesse naquela casa, eu teria impedido, eu teria impedido tamanha brutalidade. Eu teria impedido que meus pais fossem assim tão cruéis, tão assassinos quanto eles se tornaram. Se eu tivesse sabido antes, meu irmão, Filipinho, eu pedia em mente, rezando, mentalizando a imagem do fantasminha na piscina atrás de mim. 

— Você vai entregar a gente pra polícia...?

— Entra no carro, velho. 

Depois, mais tarde, a velha disse que tinha queimado sem querer a comida, e eu falei que iria pedir pizza; ela reclamou que meu pai não podia comer pizza, que ele tinha acabado de voltar do hospital, e eu mandei ela calar a boca. Ela retrucou, e eu mandei ela à merda, “ou melhor, pra prisão, tá afim?”. Ela finalmente calou a boca, e depois comeu a pizza em paz, com o velho. Pronto. Tá resolvido. É assim que vou lidar com eles, este fardo. Afinal, os pais são mesmo os crimes do passado que carregamos atrás de nós. 

Conto escrito por
Leo de Sá Fernandes

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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