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Antologia O Mal que nos Habita - 2x02

Conto de Lucas Mercês
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Sinopse: Trancafiado entre as paredes do quarto, e alheio a tudo o que acontece do outro lado de sua janela, um jovem está sozinho com as sombras que dilaceram sua sanidade. Uma sombra com olhos estáticos e braços finos está sentada no chão frio. Seria ela a causa de tamanho sofrimento?

2x02 - O Feixe
de Lucas Mercês

Aperto o peitoril da minha janela com a mesma força dos últimos dias. Aquela conhecida força que tenho usado para fincar a sanidade como uma âncora nas profundezas de minha mente, sempre terminando por vê-la voltar à superfície como se não pesasse mais do que uma pluma, que brinca e dança ilesa ao ritmo da maré, zombando da inutilidade do meu esforço.

A luz exterior que eu imaginava ainda ter a propriedade de arejar minha cabeça, como um salão vazio e empoeirado, não provocou em meus olhos nada além de ardor; olhos esses que, nas últimas horas, não têm visto nada que não as paredes úmidas de meu quarto. Abaixo a cabeça para não a absorver mais, e penso em fechar a janela para não tornar real o que eu guardo no seu interior.

O cheiro que me cerca por de trás e pelos lados também me preocupa, pois, sendo um cheiro tão forte, e sendo possível haver um faro tão aguçado a ponto de senti-lo, observo os passantes que atravessam por debaixo de minha janela, e os imagino alçando o olhar para cima no rastro do cheiro... interpretando meu rosto que provavelmente pode ser compreendido com tanta clareza quanto o meu quarto com sua janela aberta.

Penso em fechar ambas as janelas como garantia, e irei fazê-lo para ter a certeza de que nada mais entrará. Nada que me dê mais arrependimentos, ou até mesmo ilusões de que as coisas poderiam ter terminado de maneira diferente. Como poderiam, se eu sou a causa de tudo?

Deslizo minhas mãos pelos entalhes de madeira e enlaço as alças quentes com meus dedos, e reparo neles pela primeira vez em um bom tempo. O dia está quente, meu peito nu ainda abriga resquícios de suor, mas não deixo de sentir um frio inequívoco subir pela minha espinha como um raio. Eu tenho medo. Medo do que eu fiz, medo de não saber como consertar... e tenho medo da minha estupidez.

Enfio fundos meus dedos nas alças da janela e os escondo da luz, guardando apenas para mim a visão do aspecto enjoativo e avermelhado daquelas camadas secas. Antes de fechá-las, tenho um último vislumbre da luz amarelada que vem do sol, ainda banhando minha rua como a lâmpada calorosa de um largo corredor.

Por medo do escuro inevitável, fecho as janelas de maneira lenta; e, como quem dá adeus a algo que jamais retornará, fecho de maneira firme. O som grosseiro das abas se chocando me diz que não há mais para onde voltar, pois a resignação é agora a única trilha possível. Passo o ferrolho.

Acompanhado do burburinho do populacho, sons confusos das maquinarias e risadas infantis, um feixe de luz fino como uma agulha atravessa a fenda entre as abas da janela. Sua direção rápida e certeira golpeia meus olhos como se fosse a última advertência de um mundo onde as coisas ainda são belas e corretas, se é que esse mundo alguma vez existiu, ou se é fruto da comparação que agora faço com minha nova realidade.

“No final, é impossível não se tornar o que os outros pensam que você é”.

Eu fico pensando nessa frase. Não sei se de fato Júlio César a disse ou se foi atribuída a ele com o passar do tempo, mas fato é, que ela sempre me assustou.

Por mais que eu buscasse contornar meu jeito taciturno, no fim das contas minha introversão vencia, e me obrigar a ser mais sociável passou a exigir de mim uma energia que eu simplesmente não tinha - e que não me fazia falta. Claro que aos olhos das pessoas que sempre me cercaram, um jovem – em tese, no auge de sua vida – só poderia ser tão calado caso trouxesse em seu íntimo algum problema que necessitasse de solução, já que ignorá-lo seria o equivalente a manter a pradaria seca, apenas esperando pela primeira fagulha.

E, considerando a possibilidade de que eu sempre menti para mim mesmo, e que talvez realmente precisasse de algum conserto, cheguei a me avaliar diversas vezes, e em todas elas não rastreei o que poderia haver de errado comigo, pois minha autoestima sempre foi forte, e meu senso de individualidade vaidoso… até certo ponto.

Mas agora, diante do pequeno espelho preso à porta do guarda-roupas, observando minha cabeça flutuar no escuro com esse exíguo feixe de luz realçando seus detalhes, eu penso se não era necessário pôr meu conserto nas mãos de outro alguém.

Não alguém como um especialista, pois não conseguiria me sentar diante de quem não conheço e me forçar a acreditar que esse estranho ou estranha possa conhecer o funcionamento de minha mente melhor do que eu; até porque, até onde eu sei sobre a psiquiatria, seus profissionais costumam ser viciados, em se tratando de acontecimentos que eu tenho certeza serem irrelevantes – quiçá inúteis.

Sei que ele ou ela me faria suas perguntas previsíveis sobre minha infância, e eu responderia com a naturalidade de quem acende ou apaga a lâmpada de um quarto. Sim, tais detalhes continuam no meu rosto, seja no claro ou no escuro. Que fique apagada.

A mania de me auto avaliar se tornou um hábito. Sei que o medo de acender a luz só poderia ser contornado com uma boa desculpa e, por um momento, mesmo mantendo meus olhos fixos no espelho, pude ver, no canto, o único problema que estava disposto a solucionar.

Viro minha cabeça agora com mais facilidade, e sentindo a bile subir até minha garganta em velocidade lenta, diferencio os contornos disformes de uma pessoa sentada de costas para a parede. Seus braços estendidos para os lados, tão finos e quase invisíveis à iluminação pobre, denunciam a profundidade do meu crime.

Cambaleio e levo as mãos à boca ao sentir a queimação da garganta rasgar minha língua; e, em um lampejo de idiotia desesperada, imaginei que com esse vômito talvez — só talvez — eu pudesse aproveitar para despejar ao chão frio aquilo que tem me feito tão mal. Antes mesmo de me rir de tal bobagem, já havia posto a quantidade ridícula de vômito para fora.

E, agora, meu rosto se contrai como se estivesse chorando – chorando sem lágrimas. Pois é assim que devem chorar os condenados ao cadafalso; já que a esperança, sendo ela um produto do instinto de sobrevivência, sempre nos acompanhando não importando o quão improváveis sejam as chances, simplesmente abandona o miserável que olha para o alto e vê surgir diante de si a lâmina suja da guilhotina, impaciente pela próxima remessa de carne.

Eu não tenho uma guilhotina, mas uma armação feita com uma corda velha que consegui atar com força no ventilador de teto, e meu peso já foi testado. Enrolando a corda na mão e a puxando com o máximo de força que consegui, pude garantir que o ventilador não se soltaria. Eu amarro meu cinto na ponta, já que não sei como fazer o nó da forca.

Me imagino flutuando acima do chão, com o cinto garroteando meu sangue mais forte a cada segundo. Eu posso ouvir claramente os sons da corda estalando acima de minha cabeça, e posso sentir o calor da fricção do cinto contra meu pescoço. Devagar, meus olhos se fecham sozinhos, como que para atenuar a sensação de ardor que toma conta deles, pois, finalmente, as lágrimas - como que expulsas pela pressão da força - escorrem pelo meu rosto, mais salgadas do que jamais experimentei.

Meio lúcido, meio morto, imagens quiméricas se formam atrás de minhas pálpebras... frutos de minha mente? Formas espectrais de outro mundo? Seriam essas formas os meus futuros algozes, que de tão insaciáveis não puderam esperar meu coração parar de bater?

Buscando me manter acordado, o que sobra de minha consciência resolve me pregar uma última peça, e eu concebo a pior possibilidade, pois, talvez — só talvez —, essas sombras disformes sejam as mãos de minha adorada Michele, que ao morrer tendo as mesmas mãos ao redor de seu pescoço, agora dilacera meu rosto, impregnada pelo ódio que atirei contra ela ao lhe causa morte tão terrível.

Ao sentir o cheiro de carne morta e todo o ar abafado de meus pulmões sair de uma vez só, constato que ainda estou de pé no meu quarto. A corda está perfeitamente imóvel sobre minha cabeça. E Michele, com os olhos mais mortos do que posso descrever, continua com a cabeça voltada para o nada.

Escuto os sons caóticos que vêm da rua, e me lembro que as pessoas lá fora, mesmo sendo tão miseráveis e pisoteadas como baratas, continuam a fazer todo esse barulho, mostrando que estão mais vivas do que nunca. E eu me viro para a janela, por uma última vez... sinto o calor do feixe de luz que entra pela fresta da janela, e o toque frio do chão sob meus pés.

Arrasto a cadeira que está do outro lado do quarto e a coloco abaixo da corda; a subida foi leve e natural, como não imaginei que pudesse ser. O cinto que amarrei na ponta da corda, eu enrolo ao redor de meu pescoço, surpreso por ter se encaixado tão perfeitamente. Me sinto grato.

Sim, de fato! Há tantos contrastes incríveis em espaços tão curtos de tempo e lugar, que não consigo deixar de me sentir grato.

Mas aqui neste quarto, Michele, olhando para esses olhos tão indiferentes, penso que entre mim e você não há contraste, pois também estou mais morto do que você imaginava.

Olho uma última vez para o chão que minha amada fita há tanto tempo, e as fotos dela sorrindo nos braços de outro homem continuam lá.

Eu chuto a cadeira.

— Michele... não pode ver que matamos um ao outro?

Conto escrito por
Lucas Mercês

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Francisco Caetano
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Mercia Viana
Pedro Panhoca
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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