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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 4x07 - Mente Ruim

Conto de Flavia de Assis e Souza
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Sinopse: "Mente ruim" retrata os bastidores dos crimes cibernéticos contra aposentados, através de um enredo que descreve as facetas ardilosas que manipularam a protagonista, quem buscou a superação por outros valores de vida.

4x07 - Mente Ruim
de Flavia de Assis e Souza


Septuagenários são flores secas, daquelas que a gente guarda dentro de um livro de capa dura porque representam uma marcante lembrança e, quando o folheamos por motivo casual ou direcionados pelo destino, nos deparamos com aquela potência da memória, como se ali na nossa frente um filme biográfico inteiro se apresentasse.

Também são flores vivas, do tipo inusitado, que florescem em um cacto de ambiente árido ou em simbiose com um estrondoso tronco de árvore com ampla copa. Só de olhar, vemos a sutileza do belo e em quantos cantos os segredos divinos se manifestam gratuita e fortuitamente.

São ainda nosso amanhã, ou quem sabe nosso entardecer, quando acalmamos a aceleração do dia para o repouso merecido, em consonância com a contemplação do mundo conquistado e missão cumprida das horas até ali. Pois que se o transcendente permitiu este alcance na linha do tempo, privilegiados e agraciados são os que aí se ubicam.

Septuagenários são inocentes porque a vida os calejou, mas também os permitiu ali pousarem sobre uma grande história para trás e ainda um futuro promissor adiante, de outro sabor, menos adstringente e picante, como um delicado chá de ervas que desenerva. A vida fica calma e essencial na infusão, enquanto evaporam-se os tormentos que a lida da idade ativa os preconizou.

Dentro da sua inocência, são iscas das mentes ruins, mentes que escalam precipícios barrosos com ganchos precisos, os quais aceleram seu progresso ao cimo da elevação, de onde enxergam uma monocromática paisagem artificial.

Nos cantos das ruas, de localização geográfica, infográfica ou virtual, o caminhar dos septuagenários e mentes ruins se cruza potencialmente por toda parte e efetivamente aqui e acolá. A mente ruim é astuta e promove este encontro, camuflada em um rosto pacífico ou uma voz articulada ou ainda uma digitação espelhada. Faceira, atinge o alvo. Um ou outro lançamento será inócuo, porém a fração de acertos e erros nas tentativas é seguramente atrativa.

Daí mentes ruins se animam. Encontram motivos vários que não se vinculam com sorte social ou econômica, pois que se espalham em todos os guetos. Mas dois atributos lhes são comuns: a vaidade e a reprodução distorcida da lei da selva com a pujança dos mais fortes sobre os mais fracos. Um holograma que essas mentes tentam tocar, que se mantém real e indelével em tempo finito, exaurindo no espaço quando a fonte de energia artificial cessa.

Na quarta-feira de uma semana de outono ordinária, que teve dias ensolarados e outros nublados, momentos felizes, neutros e até alguns menos contentes, como na semana anterior e prognóstico da seguinte, uma senhora de vida pacata e regrada, sem excessos nem escassez, caminhava em pensamentos pela agenda do dia.

A uma curta distância física e vibracional, um homem de face neutra e pouco mais de três décadas de vida, junto com uma jovem mulher de voz firme tecnicamente e tom engajador, sondavam áreas de progresso econômico fácil, dedicados ao ofício da camuflagem. Acumularam conhecimento e técnicas para serem proficientes no labor. Tinham outros trabalhos oficiais paralelos, garantindo uma saudável identidade social. Uma faceta exigida e já milenar para atuação neste submundo.

A senhora acumulava numerosas décadas no arquivo pessoal. A família cresceu, seu patrimônio timidamente também. Era inegável que os bondosos e suados anos que antecederam sua aposentadoria lhe deram uma base simples de conforto financeiro. Passou por fases de renúncia, outras de superação, alguns intervalos de certa dependência, todos embalados em uma coleção de construção da autossuficiência para trilhar em harmonia suas décadas vindouras, mais próximas da marca secular. Na referência de um executivo de sucesso, o patrimônio era ínfimo. Na visão de um trabalhador em situação econômica vulnerável, uma cifra inatingível. Na média, uma condição afortunada para a senhora e sua jornada.

Havia vários anos, desde que os filhos viraram adultos, seguiram seus caminhos e formaram suas próprias famílias, e o marido, mesmo antes de toda esta evolução dos filhos, mudou seu estado civil, a senhora seguiu carreira solo na vida do lar, sempre rodeada pela família que cresceu e pela singeleza das suas diversões pós-aposentadoria. Diligentemente antenada nas condições primárias de segurança física e patrimonial que o mundo contemporâneo exigia, não era frágil.

 

Mas o destino traz seus golpes, termo literal e figurativo concomitantemente. E o homem de face neutra, concominado com a moça eloquente, fisgaram a senhora em um momento de baixa vigilância. Sorrateiros, sincronizados e com placidez, orquestraram um enredo envolvente para invadirem um espaço que não lhes pertencia, as finanças da senhora. Esta empreitada sem violência física ou coação evidente exigiu-lhes pouco esforço, pois já carregavam anos de ofício e os benefícios do aprendizado acumulado, garantindo notável cadência aos movimentos calculados no ataque à presa por ferramentas virtuais.

A senhora prestimosamente seguiu o protocolo orientado pelos meliantes. Suspeitou sobre a idoneidade da ação no início por ser aleatória, mas logo cedeu à cadência consistente que se estendeu entre a abordagem e a consumação do golpe. E em instantes, entre a ligação telefônica via um número oficial da instituição financeira, o compartilhamento de dados solicitados para resolver o forjado problema de clone de cartão de crédito e a presença física de um dos comparsas para coleta do cartão inutilizado, as finanças da senhora se esvaíram.

O mundo não a julgou pela suposta inocência. Não poderia ser diferente. Quem estaria isento de distrações para se eximir de algum fato passado, atual ou futuro em que um passo mal dado sob boa-fé o prejudicou? Em tempos em que a maldade permeia sutilmente a rotina dos cidadãos e o estado de alerta é imperioso na lida diária, a mente sã precisa de seu descanso e, se o momento for inoportuno, o preço pode ser a invigilância pontual, para qualquer um, a qualquer momento.

Tão milenar como a luta do bem contra o mal, é a vitória do bem. O mundo, na sua concepção magnânima sobre nossa percepção limitada, é um delicado e harmonioso equilíbrio de seres, fatos, sentimentos, histórias e relações em uma jornada conjunta e individual, com ponderações, emendas e recomeços.

A senhora se recuperou do fatídico episódio. Olhando para trás depois de um certo tempo, foi apenas um instante infeliz, de sequela mínima. Embora sob um esforço burocrático considerável, as finanças foram recuperadas, pois as convenções que envolvem o sistema financeiro facilitaram a tipificação do golpe como de responsabilidade mais ampla e, portanto, passível de uma solução sem penalização do indivíduo. A alma da senhora sentiu turbulência quando o fato ocorreu, mas logo foi tomada por um sentimento maior de tolerância ao fado, pelo baixo valor do dinheiro em relação à própria vida e dos seus. Ficou mais vigilante com suas vibrações e atitudes, para garantir que a evolução seguisse seu curso. E continuou seu caminhar e sua coleção de décadas com registros felizes majoritariamente.

O homem de mais de trinta e a jovem mulher golpistas permaneceram no famigerado ofício. Eram parte de uma corporação maior, focada em aposentados. Do golpe àquela senhora na quarta-feira de outono de um ano qualquer, tiraram vantagem. O valor transferido de suas finanças os abasteceu de algumas regalias almejadas na vil referência de qualidade de vida. Sabiam que qualquer montante significativo absorvido precisava ser rapidamente convertido em múltiplos destinos para dificultar a rastreabilidade de um sistema de segurança maior. E assim navegaram na camuflada vilania por anos.

Não se sabe ao certo se chegaram à idade septuagenária a seu turno. E, se a alcançaram, que sorte tiveram, bem como seus descendentes. Mas é sabido que se emendaram, a duras custas, numa dimensão de tempo indefinida.

Na beleza da vida, entre glórias, quedas e superações, os septuagenários representam um troféu, que diz que os esforços valeram até ali. E que seguir adiante, na coleção do bem e da resiliência que a maturidade premia, é um marco de vida longa e parte de um bem maior. 

       


Conto escrito por
Flavia de Assis e Souza

CAL - Comissão de Autores Literários
Francisco Caetano Gisela Lopes Peçanha Liah Pego Lígia Diniz Donega Mercia Viana Pedro Panhoca Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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