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Antologia Lua Negra: 3x02 - Princesa da Lua Sangrenta

Conto de Fernanda Gabriela
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Sinopse: Uma jovem mulher de vasta experiência e inúmeros mistérios decide morar em Porto Alegre e acaba contando seus segredos para um universitário sem esperanças.


Princesa da Lua Sangrenta
de Fernanda Gabriela

 

Do alto do viaduto da Borges, eu contemplava o esplendor da noite porto-alegrense, com meu casaco comprido abanando ao vento. Exagerado? Não... uma extravagância que só aqueles que viveram mais que as formigas podem se dar ao luxo. O cabelo roxo e os olhos vermelhos também.

Todas as luzes, todas as pessoas andando de um lado para o outro como formigas, indo e vindo de suas vidinhas miseráveis...ao meu lado estava um rapaz de expressões tristes, que eu conhecia apenas de vista, mas que parecia fazer parte de minha “não vida” há muito tempo. Eu estava surpresa de vê-lo ali e naquele horário, completamente fora do seu habitual. Sentado no viaduto, ele também contemplava as luzes e as pessoas abaixo, mas com um olhar muito menos interessado e muito mais perdido em seus pensamentos. No fim, ele contemplava o vazio, um horizonte sombrio. Era visível que ele estava completamente abalado, prestes a pular e terminar sua vida mortal sem graça. Que burrinho.

Ele provavelmente não morreria, apenas se machucaria gravemente. Talvez quebrasse o pescoço e ficasse de cama no hospital pelo resto da vida, sendo um fardo para outros. Ainda assim, as cores marcantes que vejo como uma aura ao redor das pessoas, neste caso a de alguém prestes a morrer o iluminavam como se ele fosse uma árvore de Natal de 1,80 m. Pode parecer bizarro da minha parte, mas aquela parecia uma chance de ter uma conversa interessante com um mortal, algo que eu não tinha há muito, muito tempo...

Me aproximei do rapaz, ainda de pé. Ele não pareceu se importar, ou mesmo me notar. Ainda perdido em seus pensamentos nebulosos.

-O que está fazendo aqui? - lhe perguntei.

-Eu não tenho outro lugar para estar... não um que faça sentido... ou que precisem de mim...- respondeu ele.

-Bom, se tu vais mesmo pular, então poderia conversar comigo por alguns minutos...? Não vai fazer diferença, não é mesmo?

Ele olhou para baixo e pareceu hesitar. Olhou pra mim e disse:

-Tudo bem. Alguns minutos a mais ou menos, no fim o resultado vai ser o mesmo. Mas se está tentando ganhar tempo pra chamar ajuda ou coisa assim, esqueça. Eu não vou mudar de ideia. - Tremendo, ele engoliu em seco.

Não te preocupa! Só quero te contar uma história. Uma muito interessante... Mas antes, me diz... o que tu achas da noite?

-Ele pareceu confuso a princípio, sem entender minha pergunta, até que, por fim, respondeu: - ...normal, eu acho...não tem muita diferença entre a noite e o dia... Ambas parecem iguais... todos os dias são iguais... apenas um amontoado de eventos aleatórios e sem sentido...

-E se você pudesse viver apenas durante a noite? Seria diferente?

Ele mais uma vez refletiu em silêncio, antes de se virar para mim e responder: -...Eu nunca pensei muito nisso... talvez fosse.

-//-

Sabes, talvez olhando pra mim tu não consigas notar há quanto tempo eu caminho pela terra...há quanto tempo eu vago, tentando saciar minha sede inominável...quanto eu vi e testemunhei, da humanidade, do seu pior ao seu melhor...

Há algumas centenas de anos, quando as doenças eram geralmente fatais e os humanos eram mais conscientes que nunca de suas misérias e fraquezas, eu caçava sem dó e nem piedade. Despedaçava minhas refeições com gosto e tranquilidade, sem medo das consequências. Por que não havia nenhuma. Ninguém para me punir ou julgar. As pessoas eram ignorantes perante a minha existência, e as lendas que eram contadas não ajudavam as vítimas que eu encontrava a se livrarem de mim. Eu era uma força da natureza.

Eu passava as noites reinando absoluta, uma verdadeira princesa das trevas. Quando eu punha os olhos em alguém, essa pessoa não tinha escapatória. Eu simplesmente drenava o sangue da pobre criatura com meus dentes afiados e fortes, sorvendo cada gota de vida até restar somente um cadáver ressecado e inerte. Admito que eu sentia um enorme prazer em ver as minhas presas se debatendo, lutando para se salvarem. Alguns tentavam resistir, se proteger. Uns usavam armas, outros apelavam para a fé. No final o resultado acabava sendo sempre o mesmo. Era uma delícia ver o sofrimento delas ao mesmo tempo que a luz deixava seus olhos, quando a alma se separava do corpo. Tinha um senso artístico nisso. Sádico, eu sei. Cruel, também...eu não vou mentir pra ti. Era divertido brincar com a comida, assim como um gato brinca com o rato antes de devorá-lo. Eu gostava disso...

Mas, enfim, os tempos mudaram...a ciência tomou conta da vida dos homens, a civilização progrediu, e as luzes tomaram conta do meu outrora escuro reino e parque de diversões. O homem passou a viver na noite como as criaturas que reinavam antes deles, sem mais temer a escuridão, sem mais temer as sobras... deprimente.

E eu então tive que... me adaptar. Me camuflar. Não gostaria que a minha existência fosse revelada nos jornais, na televisão, e posteriormente, na internet. Comecei a ficar cada vez mais discreta, pra poder sobreviver aos tais tempos modernos. Nada que não leve uns vinte ou trinta anos para aprender.

E então, depois de percorrer boa parte do mundo, eu decidi assentar-me nessa curiosa cidade, em que o inverno gela como Jotunheim e o verão queima como Muspelheim...

-//-

               Ele permaneceu em silêncio enquanto eu observava a reação dele ao que tinha acabado de contar. Não tinha sido tão divertido quanto pensei que seria. Já tinha contado a outras pessoas, mas ele não esboçou o menor espanto ou curiosidade. Decidi continuar contando a ele.

-Todas essas coisas que estou falando, tu deves pensar que sou uma vampira né? Sem reflexo, visual gótico, charme, não posso andar sob a luz do sol... ou tu pensas que sou uma louca ou uma chapada. Claro. Tudo isso é possível. Agora... qual destas possibilidades é a verdadeira?

O menino só me olhou, meio perdido, e abaixou a cabeça. Por que os humanos são tão difíceis? Aaaaaaaagh. Sério, humanos, não custa nada dizer o que se está pensando. Eu sou vampira, cheia de poderes e truques, mas eu não leio mentes. Eu continuei: - Bom, já que pelo menos a minha conversa está adiando a sua morte, deixa eu te contar a história da noite de hoje até tu aparecer...

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Sexta-feira à noite. A escuridão toma conta de cada esquina. Estamos na segunda lua nova do mês, e obviamente, no fim do mês. Os jovens acabaram de receber seus salários miseráveis e estão à procura de muita diversão e ainda mais bebidas baratas. Coitados... eles pensam que eles que vão se divertir, mas quem vai levar o troféu pra casa sou eu.

A Cidade Baixa é o point de Porto Alegre. Todo mundo adora ir pra lá ouvir música, beber e dançar. Eu adoro ir pra lá também, pra me divertir, e jogar meu jogo favorito: presa e predador. Dica: eu sou sempre a predadora. E sempre janto minha presa no fim da noite. Às vezes antes. Depende da minha fome...

A luz do Sol me machuca, então eu sempre saio depois do entardecer... eu sou meio que famosa na noite, todos conhecem o meu nome e todos querem um pouquinho da minha presença...ser popular tem suas vantagens...eu posso fazer o que quiser que ninguém vai desconfiar de mim, mesmo que todas as provas estejam contra mim. Tudo bem, não é só popularidade, uns poderes de hipnose e sugestão psíquica fazem sua parte também. Mas isso só dá certo por causa do meu charme irresistível.

 Mais uma noite, mais um jogo. Minhas entranhas vibravam e se me sacudia por dentro, pela fome. Não estava sendo exigente hoje à noite. E na minha frente havia um jovem estudante com cara de bobo e babando por estar falando com uma moça tão bonita e popular em um barzinho mequetrefe. Eu sorri, enquanto brincava com o drinque que ele havia pago pra mim.

-Tu não vais beber o drinque que te comprei? - perguntou ele.

Joguei os cabelos pra trás e disse: - Desculpa querido, mas eu jamais bebo... não drinques e bebidas baratas, pelo menos... - e dei uma boa risada.

Bom, a noite estava apenas começando, mas eu estava sem paciência para com o pobre bobalhão que não conseguia ver meu claro desinteresse nele, exceto pelo sangue que corria nas veias daquela pobre criatura. Era melhor que ele me desse logo o que eu queria, pra eu mudar de bar e de alvo. Uma vampira não sobrevive em uma cidade grande, e contraditoriamente pequena, como Porto Alegre sem ser discreta. Eu jamais mato nenhum alvo, e jamais transformo ninguém em vampiro. Eram essas as minhas regras de sobrevivência. Não estavam em nenhum livro, nem fora meu mentor que as ensinou. Eu as estabeleci, para minha própria segurança.

O coitadinho me convidou pra dançar... Pfff... Dançar é legal, mas tem hora e lugar. E companhia. E certamente música, por favor! Eu tenho classe! Eu disse a ele:

-Não... vamos pra outro lugar...-peguei-o pela mão e o levei até o beco atrás do boteco. Ele estava todo empolgado. Achava que ia ganhar um doce, eu acho... A sua mão suava frio, mas tudo bem...era só o sangue dele que eu queria mesmo...

Mordi o coitadinho e deixei que o sangue dele afluísse para a minha boca... Já havia provado melhores... Bom, há noites e noites, não é? Lambi a ferida para que cicatrizasse logo e o botei de volta pra dentro do boteco, enquanto saía sem nem dar tchau.

Eu posso até parecer baladeira, mas esse é meu sustento, entende? Tu compras um bicho morto e o  cozinha pra comer e saciar a fome. Eu preciso de sangue pra viver, e eu só bebo aos finais de semana... não precisa me julgar. Bom, saí do boteco meio contrariada, o menino tinha um gosto muito fraco... sejamos sinceros, era ruim mesmo. Azedo. Nem um pouco doce. Assim não dava. Decidi procurar mais uma pessoa pra saciar a sede.

Dessa vez foi uma menina. Ela estava distraída sentada sozinha...eu me aproximei e puxei papo. Pra uma humana, ela tinha um papo muito bom! Até conversamos por algumas horas antes que eu a mordesse e saísse correndo do barzinho, enquanto distribuía beijinhos e abanos para os “conhecidos” da noite. Afinal, eu era uma estudante bem conhecida nas festinhas e baladas. E depois dessa desventura eu te encontrei aqui, sentando com cara de bunda e olhando para o vazio da morte.

-//-

Depois de mais uns dois odiosos minutos de silêncio, ele finalmente abriu a boca: -...eu não acredito em ti...- foi tudo o que o rapaz cabisbaixo me disse enquanto contemplávamos a cidade do alto do viaduto deserto, pouco antes de amanhecer. - Por que está me contando tudo isso? Acha que eu sou bobo? Que acredito em história da carochinha?

- Não, não, eu não te acho bobo... um pouco teimoso demais, mas não bobo. E não estou te enganando. -corei um pouco. Era desagradável sentir aquele rubor subindo pelo meu pescoço e bochechas. E raro. Eu era uma vampira poxa! Tava morta! Só por manter aquele rubor, fingindo que eu estava viva, já me custava parte do sangue que eu tinha tomado. Terrivelmente desagradável.

- É que... eu sempre te vejo descer na parada do Mercado Público pra pegar o trem, voltando da faculdade... sempre sozinho e cheio de livros que eu adoro... Eu li todos esses volumes que já te vi carregando... e muitos mais. Eu nunca tive ninguém com quem conversar sobre essas coisas, e achei que tu entenderias... só isso. A imortalidade é uma benção, mas tem suas partes chatas... uma delas é não ter com quem conversar sobre os livros que se gosta ou outros hobbies... por que todo mundo, no fundo, é comida!

Ele ainda me olhava com ar de quem não acreditava muito. Pelo jeito, era mais solitário que eu.

- Enfim, foi uma surpresa te achar aqui durante a madrugada, já que só te vejo voltando da faculdade...acho que não existem coincidências, apenas o inevitável. Então, decidi falar contigo. Ao menos antes que tu pulasse para o descanso eterno. A eternidade é um fardo grande demais... seria bom ter um amigo com quem dividir essa vida sem fim.

Ele disse que pensaria no assunto, e eu não insisti mais. Deixei-o ali, na ponte e segui caçando durante as noites, sempre discreta e eficiente. Não voltei à ponte por um bom tempo...

 Era período de férias da faculdade e eu não via mais o rapaz descendo do ônibus na parada do Mercado Público..., mas um dia eu estava distraída no bar, procurando pela próxima presa, e vejo o rapaz, outrora cabisbaixo, entrando no bar com um enorme sorriso no rosto. Ele senta ao meu lado, e pergunta o que eu gostaria de beber. Com um sorriso maroto, eu respondo:

- Querido, você sabe que eu jamais bebo esses drinques comuns...


Conto escrito por
Fernanda Gabriela

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Alex Xela Lima
Eliane Rodrigues
Francisco Caetano 
Gisela Lopes Peçanha
Lígia Diniz Donega
Márcio André Silva Garcia
Paulo Luís Ferreira
Pedro Panhoca
Rosside Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

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