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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 2x03 - Lapso

Conto escrito por Maria Cristina Santos Lima
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Sinopse: Um policial do interior do Brasil está passando por uma fase muito difícil na sua vida, inclusive no trabalho, em uma delegacia de homicídios, e vai tentar, da melhor maneira possível para ele, colocar tudo em ordem, resolvendo as coisas uma a uma. A narrativa está na primeira pessoa, no caso, o investigador da polícia.


2x03 - Lapso
de Maria Cristina Santos Lima

Eu e Flávia estávamos casados há cinco anos e ela era a única pessoa que eu tinha na vida, única, para falar a bem da verdade. Ela nunca quis ter filhos e isso me entristecia, mas fazia parte do seu temperamento, sempre solta, livre e impulsiva. Sem maiores apegos. Um dia, nesses momentos de conversas tipo profundas, ela me contou que um médico da capital a diagnosticou como maníaco-depressiva, mas ela não admitia isto e creditava a ele a alcunha de charlatão. Não preciso dizer que isso me afligia muito. Meus pais já haviam morrido há doze anos, infelizmente, em um acidente de automóvel e meu tio, o único que sobrou da parentela, morava em um sítio no Rio Grande do Sul, isolado, longe e fronteiriço, fazendo divisa com o Uruguai, próximo à Santa Vitória do Palmar, bem extremo sul do país. Eu mantinha com ele só contatos indispensáveis, pois brigamos de verdade quando da morte dos meus pais, e, por razões íntimas, que não vou falar aqui porque não quero, vejo ele como único culpado. Como se não bastasse, ele se mantinha estabelecido, enraizado, sem nem sequer pensar em discutir, em uma terra que a metade me pertencia por direito. Meu casamento ia de mal a pior por vários motivos, entre eles, o baixo salário que eu ganhava na delegacia de homicídios de Pinhalinho, região metropolitana da capital, como investigador policial, sem ter nenhuma perspectiva de melhora e as desconfianças, sempre insistentes, que não conseguia abandonar, a cerca do comportamento da minha mulher. Eu andava desgostoso ultimamente, muito. Flávia não era mais a mesma, a casa sempre em desordem, uma baderna, um espaço onde não se encontrava nada em seus lugares e sem contar a conversa chata e insistente que filhos não teriam lugar no momento na nossa vida, que não tínhamos estrutura para isso, eternamente obstinada em saídas noturnas, baladas, lugares que eu não me sentia bem, sem se importar com gastos, limite do cartão de crédito e por aí vai. Eu me ressentia, cogitando no íntimo, que ela poderia trabalhar também, fazer alguma coisa, qualquer coisa que ajudasse nas despesas da casa. Mas não tinha coragem de falar, sabia que ela me desprezaria até o último fio de cabelo e ficava por isso mesmo.

Na sexta-feira pela manhã quando cheguei na Homicídios o delegado mandou me chamar e logo vi que não podia ser coisa boa. Ele tinha um ar pouco confiável, quase debochado, além de ser uma pessoa que, por mais que eu me esforçasse, não gostava. Nunca nos entendemos bem e sempre engoli todos os sapos que ele mandava tipo via Sedex. Naquela manhã em especial estava com uma cara pretensiosa que eu já conhecia, sentado na cadeira diretor ergonômica, que bem podia ser minha, com um ar de sou melhor que você e ponto, como sempre. Usava uma jaqueta de couro marrom com ares de cara, um sorriso falso. Veio com aquela conversa que eu não estava indo bem, talvez cansado, improdutivo, meu trabalho deixava a desejar e era melhor eu tirar férias, trinta dias. Fiquei chateado porque queria vinte e dez em dinheiro. Nem ousei pedir. Ele iria providenciar tudo para a tarde e conversaríamos novamente quando eu voltasse da licença. Era bom já emendar o fim de semana com as férias e blá blá blá. Disse ok, sim senhor, peguei minhas coisas e me retirei o mais rápido possível.

Quando avancei para a calçada fui até o telefone público e liguei para casa, precisava desabafar com alguém. Flávia atendeu e quase pôs fim no meu mundo já conturbado e insignificante. Ela queria um tempo, estava com as malas prontas e iria para a casa dos pais em São Paulo. Não sabia quando voltava, precisava de espaço, queria pensar melhor em tudo. Fingindo descaso contei que tinha recebido férias, iria então aproveitar para ir, no sábado cedo, para o sul, visitar meu tio para resolvermos nossas questões. Talvez uma viagem para mim também ajudasse. Ela não demonstrou nenhum sentimento que oferecesse um alento, nenhuma saudade, nada. Me despedi de Flávia pressentindo o óbvio, ela não voltaria, estava me abandonando. Só, me sentindo completamente desabrigado, fui para o centro resolver pendências porque até as dezessete horas tinha que voltar para assinar as férias e pegar o valor disponibilizado pelo município. No caminho encontrei um amigo que há muito não via e depois do bate-papo cordial combinamos de jantar junto no Rosa Mística, um lugar que eu gostava bastante.

No final da tarde fui para casa, tomei um banho demorado, troquei a roupa que foi escolhida a dedo, passei o perfume que tinha comprado no centro e arrumei a mala, colocando só o que estava limpo e não era muita coisa. Flávia odiava lavar roupa, principalmente a minha. Contei o dinheiro das férias e dividi o valor entre a carteira e o bolso interno da jaqueta. Por via das dúvidas, coloquei o coldre de tornozelo e encaixei a Taurus. Costume. Nunca se sabe. Chamei um táxi, pois pretendia sair do restaurante direto para a rodoviária. Fechei as janelas e dei uma última olhada na casa. Quando desci, da porta do elevador já vi um alarido de pessoas na calçada do prédio, mas como estava com pressa, entrei no táxi sem olhar para trás. Essa gente adorava uma novidade. Encarei o taxista e pedi para tocar até o Rosa Mística.

O jantar foi muito bom e eu estava tranquilo como há muito não me sentia, bem-disposto, querendo viver. Eraldo era uma pessoa de conversa fácil, sem meandros obscuros, tudo era despreocupação e cerveja gelada. Demos algumas risadas nos lembrando do passado, da época do supletivo, das garotas, se viu alguma ultimamente, como está, aquela coisa. Quando deu nove horas avisei ao meu amigo que pretendia pegar um ônibus para o Rio Grande do Sul, às dez horas, e precisava ir. Pedi um táxi no balcão, paguei minha parte da conta e nos despedimos.

Já na rodoviária me dirigi ao guichê da agência de viagem e pedi uma passagem para Porto Alegre o que o atendente prontamente me informou que estavam esgotados os lugares nos coletivos para aquela noite. Fiquei chateado e raciocinando porque não previ isto antes. De repente, um rapaz com aspecto gentil, se desculpou e me informou que queria vender a passagem dele para o horário das vinte e três horas. Aceitei prontamente e considerando ter ainda uma hora e meia até o embarque guardei a mala na prateleira, disponível no armário geral, e como a noite estava bonita, saí dar uma volta. Ainda um pouco alto da cerveja, quando retornei para pegar o ônibus achei por bem tomar dois cafezinhos antes de embarcar. Na porta do ônibus, como o motorista estava com pressa, aparentemente atrasado, não pediu meus documentos e embarquei com o nome do rapaz ainda no bilhete. Não tinha a menor vontade de resolver esta pendenga e achei melhor deixar assim mesmo.

Quando o ônibus entrou na estação de Porto Alegre já fazia dez horas de viagem e meu pescoço doía, minhas pernas estavam moles, a luminosidade era forte do lado de fora e eu estava um pouco aéreo. Era uma manhã de muito frio, tempo nublado e sem contar o vento gelado que fustigava minha camisa e batia meu queixo quando desci do coletivo. Logo vi na parede frontal da entrada, uma tabela de horários dos coletivos que partiam para o interior e ainda faltava uma hora para o ônibus que me levaria a Céu Azul encostar. Tomei uma vitamina na lanchonete para tirar de vez aquele gosto de cerveja, comprei cigarros e o jornal Estado para ler na viagem de três horas.

Qual é a minha surpresa quando vejo, na seção Só Policia do jornal, a foto do delegado Wilson e uma manchete efervescente, quase uma profecia. A polícia acharia, doa a quem doer, o assassino do estimado delegado, encontrado ontem à noite, morto com dois tiros no peito, em frente a sua casa. Era uma notícia e tanto. À queima-roupa. Aquele cretino, que me deu um chega pra lá e paquerava descaradamente a Flávia, havia sido morto na noite anterior quando chegava em casa. O marginal esperou por ele na garagem e disparou dois tiros certeiros. A polícia estava em polvorosa e prometia encontrar o assassino o mais rápido possível. Me senti ameaçado, ser policial nestes tempos não era fácil e compreendi como foi sensato de minha parte trazer junto a pistola. É, convenhamos, as pessoas supõem que tudo é descartável. Não quer mais o funcionário, dá férias, não quer mais o casamento, vai embora, não quer dividir a herança, senta em cima e se cala. Daí acontecem coisas ruins como essa. Nada me surpreende mais. A primeira coisa que pensei foi em ligar para a delegacia logo que chegasse a casa do tio, saber todos os detalhes do que ocorrido. Não sei, mas sinto que esta notícia deu uma luz na minha vida, parece que nem tudo está acabado. A cadeira estava vazia e o chato está agora acertando contas.

Lá pelas quatorze horas cheguei ao meu destino. O tio, desconcertado, me recebeu com um riso pasmo nos lábios e levemente pálido, procurando não demonstrar a insatisfação e perplexidade de ver seu único parente vivo à sua frente. Velho ganancioso. Não casou para não precisar dividir nada com ninguém e agora eu estava ali, lembrando a ele que, infelizmente, como eu, ele não estava tão sozinho assim no mundo. Ficou parado, estático e em vez de me dar boas-vindas disse que estavam me procurando, tinham telefonado ontem à noite e hoje pela manhã também. Quis saber qual era o motivo dos telefonemas. Eu não sabia? Flávia! A minha amada Flávia tinha sido encontrada estirada na calçada em frente ao prédio que morávamos. Ela não estava em São Paulo a estas horas? Não. Ela não foi a São Paulo. Segundo a polícia ela foi empurrada da janela do décimo andar ontem à tarde, antes do anoitecer. Mas eu estava lá esse horário! Sim. A polícia disse que foi você quem empurrou. Não pode. Eu não faria isto com a minha amada Flávia. A polícia disse que você fez. Ligaram hoje pela manhã porque você também é suspeito pela morte do delegado Wilson, aquele que te deu férias! Delegado Wilson? Mas como? Eu estava na rodoviária vindo para cá! Comecei a ficar zonzo. Aquilo tudo já estava me cansando. Estava cansado da viagem. Cansado daquela vidinha de mendigo de almas. Cansado de ter que olhar mais uma vez para a cara do tio, aquela cara ensebada e velha. Cansado. Cansado. Pus a perna na cadeira e saquei a pistola. Olhei o pente. Me certifiquei. O tio quis correr, mas fui mais rápido. Disparei dois tiros nas costas. À queima-roupa.






Conto escrito por
Maria Cristina Santos Lima

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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Sinopse: Armando recebe uma ligação de madrugada "É coisa grave" diz seu amigo de vinte anos, o Moura. Ele vai ao encontro dele num lugar um tanto incomum: um galpão.



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