CENAS DO CAPÍTULO ANTERIOR:
FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 17

Homens armados descem das viaturas que chegam de Vila Bonita. A multidão berra, o confronto é inevitável; balas de borracha perdem-se no céu anuviado, bombas de efeito moral tentam conter os manifestantes, mas arredios, eles não se afastam, como se ganhassem algo por enfrentar a polícia. O comandante da operação, um senhor grisalho de uns cem quilos, com um megafone à mão, ameaça com prisão aos que insistirem na arruaça. Vaias se mesclam a risadas. Descrente na instituição, o povo não cumpre as ordens da autoridade, arremessando não só pedras e porretes, como pedaços de uma construção à delegacia.
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– Estava tudo correndo bem! Que droga! – branda, comprimindo o gesso do braço. – Precisamos aniquilar aquela criatura, ela é a passagem para o nosso futuro tranquilo... ou se esqueceu?
– Claro que não, meu filho! Mas o quer que eu faça? – tosse. – Ave! Preciso de um saquê!
– Estamos em um hospital, Tanaka! O que pensa que servem aqui?
– Pelo menos um saquê aos convidados. Tô com a goela seca, seca!
– E por acaso isso aqui é alguma festa para receber convidados? Você é um irresponsável. Eu deveria ter acabado com aquele infeliz quando tive a oportunidade, mas preferi ouvir seus conselhos...
– Que deram certos! Veja, veja, já está eleito prefeito da cidade, a maioria da população grita o seu nome.
– Que se dane essa gentalha, o que eu queria mesmo era aquele motorista MORTO!
Catharine abre a porta e o surpreende.
FLOR-DE-CERA - CAPÍTULO 17

Homens armados descem das viaturas que chegam de Vila Bonita. A multidão berra, o confronto é inevitável; balas de borracha perdem-se no céu anuviado, bombas de efeito moral tentam conter os manifestantes, mas arredios, eles não se afastam, como se ganhassem algo por enfrentar a polícia. O comandante da operação, um senhor grisalho de uns cem quilos, com um megafone à mão, ameaça com prisão aos que insistirem na arruaça. Vaias se mesclam a risadas. Descrente na instituição, o povo não cumpre as ordens da autoridade, arremessando não só pedras e porretes, como pedaços de uma construção à delegacia.
Com a situação fora de controle, resta ao
oficial disparar para o alto e berrar aos subordinados:
– PRENDAM TODOS! Essa cambada verá como é bom
dormir no xadrez.
A cacetadas, os policiais irrompem a multidão,
que se refugia atrás dos muros e dos postes. Na correria, uma senhora é
pisoteada e grita por misericórdia. Dezenas de manifestantes são algemados e
lançados às viaturas a pontapés, nem as crianças são poupadas – as capturadas
são enviadas às autoridades judiciais. Os poucos que sobram permanecem
escondidos, à espera de uma oportunidade para voltar para casa.
Escoltado, Joaquim é levado para um furgão, que
o aguarda com as portas escancaradas.
– Me soltem! Eu não fiz nada! Por favor,
acreditem em mim! – berra, em desespero, acompanhado pelos olhos apiedados de
Rubens Arraia.
– O senhor vem com a gente também, seu
depoimento será colhido pelo doutor Paineiras Ken em nossa delegacia, pois essa
está interditada até última ordem – comunica o oficial ao médico.
– Como está, George? – pergunta Catharine ao
esposo.
– Um pouco sonolento e com dor de cabeça –
faz-se de vítima, percebendo que ela não havia ouvido a conversa dele com
Tanaka. – Que bom que chegou, querida, senti muito sua falta!
– Vou me retirando, sabe como é, os pombinhos
precisam ficar a sós... – graceja o prefeito.
– POMBINHOS? – ironiza a mulher. – Às vezes
penso que lhe faltam alguns miolos, Tanaka. Não percebe que entre nós não há
mais qualquer resquício desse sentimento, e se houver, deve estar enterrado em
algum lugar tão sombrio que nós mesmos desconhecemos.
– Pombinhos, sim – insiste –, vejam, são
lindos, até parecem saltados das telas de alguma telenovela de Glória Perez¹.
Não há em Vila dos Princípios quem não os inveje, afinal, são ricos, cultos,
elegantes e, principalmente, humildes.
– HUMILDES? – pergunta a mulher, num misto de
surpresa e deboche. – Não sei qual é seu conceito de humildade, prefeito,
talvez tenha de voltar aos bancos escolares e conhecer um pouco mais a fundo o
léxico de nossa língua. Somos, se me permite a ironia, a aversão da humildade.
– Aversão da humildade? Então somos arrogantes?
– revolta-se o vereador. – Perdoe-me, querida, mas nossa estirpe jamais
padecerá de um mal como esse; às vezes somos vítimas da excentricidade, do luxo
desvairado, daí à arrogância?
A herdeira dos Dumont percebe o mal-estar e se
cala.
– Desculpe-a pela brincadeira, Tanaka!
Catharine tem um humor rasteiro, de uma acidez peculiar.
– E quem não conhece as “farpas sutis” de dona
Catharine Dumont? Não há nessa cidade quem ainda não tenha sido vítima dessa
sua “acidez peculiar”.
O homem se retira exasperado com a postura da
mulher.
– Por que está tão irritada? O que fez com
Tanaka foi...
– Não vim até aqui para perder tempo com aquele
beberrão – interrompe-o com aspereza.
– Pelo que vejo, está insatisfeita por me ver
bem?
– Não! – balbucia.
– Vejo em seus olhos, queria-me um defunto,
pronto para ser engolido pelos vermes, não é?
– Fale-me com sinceridade – se é que conheça a
essência dessa palavra, como tudo isso começou? Eu ainda não entendo o porquê
de um criado sacar-se de uma arma e disparar contra o patrão... A não ser que
esse mesmo patrão lhe tenha feito algo, talvez uma ameaça...
– COMO ASSIM? Ameaça? Que tipo de ameaça? Está
louca, Catharine? Meu Deus, além de uma bala no braço, ainda tenho de ouvir tal
sandice? Que piada de mau gosto! Todo mundo sabe, aquele matuto pulou em mim e
passou a me espancar, parecia dominado por um espírito ruim.
– Não foi o senhor que o desafiou, dando-lhe,
inclusive, uma surra em nosso hall de entrada?
– Quem lhe disse isso? Ah, já sei, deve ter
sido aquela criada dos infernos, mas ela me paga, ah se paga!
– Por que insiste em mentir, George? O que
ganha com isso?
– NÃO ESTOU MENTINDO! – grita. – Sou a vítima,
não o acusado. Por que duvidas de mim, criatura?
– Continue berrando, o povo e a imprensa que o
aguardam adorarão conhecer sua outra versão, aquela em que zelar pela família
ou nascer pobre é defeito genético. Seus eleitores podem se revoltar, imagine
invadirem o hospital e lhe cobrarem pelos votos das últimas eleições?
– Ainda não entendi... Aonde quer chegar?
– Você sabe! – afirma, não acreditando ser
esposa de um homem tão vil.
– Por que está me olhando assim? – estranha. –
O que lhe fiz, Catharine?
– Como pode ser tão dissimulado? Não é à toa
que é um político em ascensão! Se não fosse de carne e osso, diria que é a
reencarnação de Macunaíma, ou o modelo a quem Mário de Andrade se ateve para
criá-lo.
– Se eu pudesse levantar dessa cama...
– ...e o que faria? Espancar-me-ia de novo? –
desafia. – Ó, George, só agora percebo o quanto é previsível!
– O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? NÃO VÊ, ESTOU EM UM
HOSPITAL, RECUPERANDO-ME DE UMA CIRURGIA! CADÊ SUA... SUA SOLIDARIEDADE?
– Sou a sua imagem, incapaz de emitir qualquer
sentimento, ainda não percebeu?
– Por que me ofende tanto, mulher?
– Porque não entendo o que faz um homem que se
intitula defensor dos mais humildes arruinar a vida de um coitado como Joaquim!
Se não gostava dele, demitisse-o; agora, forjar uma situação para ele perder a
cabeça e quase cometer um assassinato? Isso é cruel, melhor, desumano!
George acompanha-a com os olhos admirados.
– Sabe do que estou dizendo, não sabe,
vereador? Aquele coitado não seria capaz da monstruosidade de que o acusa, não
é?
– Os fatos mostram o contrário! – aponta para o
braço. – Ele não é o anjo que imagina, aliás, de anjo ele não tem nada, basta
roçar aqueles cabelos arrepiados para se encontrar os chifres.
– O QUE VOCÊ FAZIA NO QUARTO DELE??? – exige
com veemência. – RESPONDA-ME: O QUE FAZIA NO QUARTO DELE?
George engole a saliva.
– O QUE VOCÊ FAZIA NO QUARTO DELE? – insiste.
– Eu... eu não estava...lá...quer dizer...
– E onde foi baleado? Em nossa casa? Não, no
quartinho do empregado. Estou errada?
– Ele... bem...ele me levou para lá...
– Marcilio Ficino² estava mesmo certo, “a
mentira arruína rapidamente o mentiroso”.
– MENTIROSO? – os olhos inflamam de raiva. –
VOCÊ ESTÁ ME CHAMANDO DE MENTIROSO? QUE AUDÁCIA!
– Deixe o cinismo de lado, George, Moacir me
contou tudo durante o caminho, ele o viu entrando no quarto de Joaquim por
livre e espontânea vontade.
– Moacir lhe disse isso? Não me faça rir!
Acredita mesmo naquele velho maluco? – zomba. – E o que mais ele lhe contou?
– Que em suas mãos estava uma arma – completa,
surpreendendo o vereador, que arregala os olhos.
– Então foi ele quem disparou a arma contra o
vereador? – interroga o delegado Paineiras Ken, já na delegacia de Vila Bonita.
– Fale tudo... tudo!
– Bem, eu o vi apontando a arma para ele,
então... – responde doutor Rubens.
– ...então foi ele mesmo! – entrecorta-o o
delegado, para a surpresa até do escrivão. – Foi ele, é claro! Deve ser inveja!
Hum!
– Inveja de quê? – pergunta o médico,
estranhando a parcialidade da autoridade.
– Bem... – tosse, desconversando. – É modo de
dizer, doutor. O senhor é muito apegado às palavras.
– As palavras têm peso, senhor.
– ISSO É VERDADE! – concorda o escrivão, que se
encolhe, ao ser repreendido pelos olhares indignados do delegado.
– O senhor viu ou não o motoristazi...o
motorista atirando no vereador George Dumont?
– Atirando não, mas apontando a arma para ele.
– É a mesma coisa! Tudo acaba no tiro...
– Não é a mesma coisa. Não assinarei esse
testemunho se não estiver do modo como relatei.
– Como o senhor é encrenqueiro, doutor Rubens!
Estou apenas cumprindo a rotina. Um dos cidadãos mais ilustres de Vila dos
Princípios fora baleado, portanto é justo que a polícia esclareça o fato para
que o Judiciário sentencie a pena... – volta-se para o subalterno -... aliás,
veja nos arquivos se o tal criado tem licença para portar uma arma e se ela
está registrada no nome dele.
Corrigido o depoimento, ele faz a sua leitura
minuciosa do termo e o assina.
– Não sou encrenqueiro, senhor delegado, apenas
justo, porque se eu disser algo de que não seja a VERDADE, o pobre poderá
passar anos atrás das grades, injustamente.
– Esse bicho ainda vai dar trabalho! Hum! Se eu
fosse o prefeito, acabaria é com ele! – resmunga Paineiras, vendo-o deixar a
delegacia.
– Um Abacataré³
– caçoa um presidiário, vendo Joaquim se aproximar.
– Entra aí, vagabundo! – o policial retira as
algemas e o empurra para dentro de uma cela em que há outros quarenta detentos
– um covil de lobos preparado para devorar a nova ovelha.
– Tá puxando cana por que, irmão? – inquire um
crioulo de pouca idade, com bigode rasteiro e sem os dois dentes dianteiros,
aparentando ser o líder da cela.
O medo o impede de responder, para o delírio da
bandidagem, que bate nas paredes, pedindo o seu sangue. A vida ali,
infelizmente, é uma moeda depreciada.
– É fruta? Se for, hoje não tem pra ninguém, é
só meu – diz outro detento.
– E meu também!!! – gritam duas ou três vozes
diferentes.
– O irmão tá tirando o muquifo? Por que não
responde? – o suposto chefe prensa Joaquim contra a parede. – O que ele
aprontou, Zelão? – volta-se para o policial, que está à grade, rindo da
desgraça alheia.
– 121.
– É um dedo
mole⁴? Hum! E aí, cambada, vamos jantar esse noia? – zomba
o rapaz.
– Noia? Arguém me chamô? – pergunta um amarelo,
ao fundo, encostado a uma cama de concreto.
– Não, Vacão! Chera queto o teu fubá aí... –
responde, virando-se, em seguida, para o chofer. – Fala, se não eu te furo.
– Então quer dar um de vichenzo⁵? Pois
vamos ver! Estou louco para rasgar esse desgraçado! Se você não furar, eu furo–
deleita-se o detento mais velho da cela, ao se aproximar, com um punhal feito
com escova de dentes às mãos.
– Cê aguenta, Messias? Pois eu pago pra vê o
arranca rabo – diz o policial, gargalhando.
– Por favor, não me mate! Por favor! – implora,
Joaquim, com a mente elevada às orações ensinadas pela mãe.
– Ernestina?! – pergunta o médico, ao entrar em
sua casa. – O que faz aqui a essa hora? Aconteceu alguma coisa com Catharine?
– Precisava falar com o senhor, o assunto é de
seu interesse.
Entrega-lhe o envelope.
– Que brincadeira é essa, Ernestina? –
assombra-se ao rever a letra de Franceline. – Não estou entendendo nada! Essa
letra é de... de..., mas... mas...COMO?
– Abra-o e entenderá! – determina, não contendo
a ansiedade.
Encerra com a música (Victory - Two Steps From Hell).
__________________
1. Uma das principais escritoras de novelas
brasileiras. É de sua autoria O Clone (2001) e Caminho das Índias, esta última,
vencedora do Emmy 2009 (a maior premiação da televisão), na categoria de Melhor
Novela.
2. Filósofo italiano. Traduziu obras de Platão
e difundiu suas ideias.
3. Segundo a linguagem dos presos, caipirão,
bobo.
4. Assassino.
5. Pessoa
boba, honesta.

autor
Carlos Mota
A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
A novela "Flor-de-Cera" é remake de "Venusa Dumont - da memória à ressurreição" de Carlos Mota
elenco
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela
participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho
atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria
a criança
Valentina Silva como Alana
trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)
Victory - Two Steps From Hell
desenhos
Andrea Mota
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Grazi Massafera como Catharine Dumont
Thiago Lacerda como George Dumont
Ricardo Pereira como Joaquim
Elisa Lucinda como Ernestina
Carlos Takeshi como Tanaka Santuku
Miwa Yanagizawa como Houba Santuku
Jesus Luz como Pietro Ferrara
Lucinha Lins como Franceline Legrand Dumont
Lima Duarte como Dilermando Dumont
Herson Capri como Doutor Rubens Arraia
Tonico Pereira como Moacir
Werner Schünemann como Paineiras Ken
Rosi Campos como Adelaide
Humberto Martins como Alberto Médici
Cauã Reymond como Ricardo
César Troncoso como Zé dos Cobres
Ilva Niño como Josefa
Selton Mello como Zelão
Matheus Nachtergaele como Meia-noite
Caio Blat como Delegado de Vila Bonita
Caio Castro como Leandro
Alexandre Borges como Doutor Jaime
Caroline Dallarosa como Carmem
Fernanda Nobre como Stela
participação especial
Stênio Garcia como Doutor Lúcio
Drica Moraes como Desirê
Marco Nanini como Chico Santinho
atores convidados
Ary Fontoura como Doutor Tobias
Alexandre Nero como Júlio Avanzo
Elizangêla como Maria
a criança
Valentina Silva como Alana
trilha sonora
Lágrimas da Mãe do Mundo - Sagrado Coração da Terra (abertura)
Victory - Two Steps From Hell
desenhos
Andrea Mota
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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